As Instituições Financeiras de Desenvolvimento (IFDs) – compostas por bancos multilaterais de desenvolvimento, bancos nacionais de desenvolvimento e bancos públicos regionais, desempenham um papel central na transformação estrutural das economias. Diferentes em escala e escopo, todas compartilham uma missão: promover investimentos de longo prazo em áreas estratégicas. Mais do que intermediárias financeiras, as IFDs são ferramentas de política públicas capazes de (re)direcionar fluxos financeiros, mitigar riscos, mobilizar recursos e estimular a inovação provendo capital paciente.
No atual contexto de crise climática, ambiental e social, essas instituições emergem como uma missão renovada de protagonizar a construção de uma nova arquitetura financeira, guiada por uma nova Convenção do Desenvolvimento Sustentável, agora voltada para a transição verde sustentável – com um objetivo coletivo, de longo prazo e orientado por missões.
A “transição verde sustentável”, nesse contexto, refere-se à mudança sistêmica do modelo atual — baseado em exploração intensiva de recursos e desigualdade — para um modelo que combine descarbonização, regeneração ambiental, inclusão social e justiça territorial acompanhado de mudança estrutural. Isso exige, simultaneamente, a reorientação da lógica financeira e o redesenho das instituições que guiam o investimento.
Este artigo examina o papel das IFDs na viabilização dessa transição, explorando sua atuação nos âmbitos multilateral, nacional e regional, bem como as reformas necessárias para que possam cumprir plenamente sua função estratégica. Defendo que as IFDs devem estar inseridas na missão do Estado e atuar de forma articulada em rede, compondo um sistema de fomento coeso e coordenado. A eficácia desse processo depende da construção de uma arquitetura financeira capaz de integrar escalas e territórios, alinhando os mandatos dessas instituições à visão de desenvolvimento expressa pela própria transição verde-sustentável.
Arquitetura Financeira na Transição Verde-Sustentável
O sistema financeiro ocupa uma função central na transição verde-sustentável, pois é por meio dele que se torna possível mobilizar recursos em larga escala e direcioná-los para investimentos sustentáveis, de longo prazo e com potencial transformador. Diante da urgência e complexidade desse processo, somente um sistema financeiro reestruturado — ancorado em políticas públicas e orientado por objetivos climáticos e ambientais — é capaz de garantir os fluxos financeiros necessários dentro de um horizonte temporal compatível com a magnitude e escopo dos desafios. Trata-se de construir uma engrenagem financeira capaz de sustentar, em ritmo e escala adequados, a transformação produtiva e territorial exigida pela nova etapa do desenvolvimento.
Sob a Convenção para o Desenvolvimento Sustentável, o sistema financeiro deve ser reposicionado como um componente estratégico da ação, dotado de mecanismos capazes de orientar investimentos, absorver riscos sistêmicos e sustentar a transformação estrutural exigida pela crise climática, ambiental e social.
No entanto, em sua estrutura atual, o sistema financeiro não está desenhado para viabilizar a escala e a velocidade exigidas pela transição verde sustentável. Seu funcionamento é orientado por retornos de curto prazo, foco em liquidez imediata e aversão a riscos complexos e incertos. Essa lógica favorece investimentos em setores tradicionais, de retorno previsível e colateral tangível, como combustíveis fósseis, grandes monoculturas e infraestrutura urbana convencional. Em contrapartida, setores essenciais à transição são sistematicamente negligenciados.
Além da seletividade setorial, o sistema atual exclui regiões por critérios de baixa rentabilidade e alto risco. Comunidades rurais, periferias urbanas e territórios indígenas e de comunidades tradicionais enfrentam escassez crônica de crédito para empreendimentos sustentáveis, mesmo quando geram valor socioambiental relevante. Isso cria um vácuo de financiamento estrutural que compromete a inclusão territorial na transição.
O problema se agrava quando se considera a janela crítica de tempo. A transição verde sustentável precisa ocorrer com intensidade nesta década. O volume de investimento necessário é alto, e o tempo para evitar o aprofundamento da crise climática, ambiental e social está se esgotando. A dependência exclusiva de ajustes espontâneos do mercado financeiro não é viável: os mecanismos tradicionais não irão se adaptar sozinhos com a rapidez exigida.
Nesse contexto, as IFDs assumem protagonismo na reorganização do sistema financeiro em direção à transição verde-sustentável. Com mandatos públicos e possibilidade de inserção institucional no planejamento do Estado, essas instituições operam com horizontes temporais compatíveis com os ciclos de transformação estrutural exigidos pela crise climática, ambiental e social. Sua presença territorial e sua capacidade de coordenação intersetorial lhes permitem articular compromissos internacionais, políticas nacionais e dinâmicas locais, atuando como plataformas de execução de projetos que integram metas climáticas, ambientais, sociais e econômicas.
As IFDs não apenas podem direcionar crédito para setores emergentes e socialmente estratégicos, como também construir os instrumentos e os arranjos institucionais necessários para sustentar novas trajetórias de desenvolvimento. Ao fazê-lo, exercem uma função organizadora da economia, promovendo a criação de novos espaços de investimento, induzindo expectativas e consolidando pactos de longo prazo em torno de um projeto ancorado na transição verde sustentável. Mais do que financiadoras, as IFDs são mediadoras de expectativas, tornando-se catalisadoras indispensáveis da transição.
Para que esse novo papel seja cumprido, a arquitetura financeira precisa ser reconcebida. Bancos centrais, reguladores, IFDs, governos e agências de planejamento devem operar como partes coordenadas de uma engrenagem coletiva, sincronizados por objetivos compartilhados. Isso envolve mais do que regulação prudencial: implica estruturação de incentivos fiscais, uso estratégico de compras públicas, mecanismos de garantias e financiamentos híbridos. Somente um sistema financeiramente coerente com as metas de sustentabilidade poderá catalisar a transição verde no ritmo e volume necessários.
O Papel Multinível das Instituições Financeiras de Desenvolvimento – IFDs
Para que a transição verde-sustentável aconteça na escala e com a urgência exigidas, é indispensável articular de forma coordenada os diferentes níveis institucionais — do global ao nacional, e destes aos territórios locais. Nesse esforço, as IFDs ocupam uma posição estratégica: por operarem com mandatos públicos, integrarem políticas a instrumentos financeiros e circularem entre diferentes esferas decisórias, elas estão especialmente capacitadas para liderar a construção de um sistema financeiro multinível, coerente com os objetivos da transição.
A proposta é que os bancos multilaterais, nacionais e regionais de desenvolvimento atuem de forma complementar, cada um com um papel distinto e interdependente. Os bancos multilaterais devem ancorar compromissos e padrões globais; os bancos nacionais devem internalizar esses compromissos nas políticas públicas, potencialidades e necessidades de seus países; e os bancos regionais devem traduzir essas diretrizes em ações concretas nos territórios, onde a crise se manifesta de maneira mais aguda.
No nível global, os bancos multilaterais de desenvolvimento devem liderar a mobilização de recursos, estabelecer critérios de sustentabilidade e garantir coerência entre os fluxos financeiros e os acordos internacionais sobre clima, biodiversidade e justiça social. Por meio de financiamentos concessionais, parcerias público-privadas e mecanismos de cofinanciamento, essas instituições podem induzir a convergência entre diferentes agendas e facilitar o acesso de países do Sul Global a recursos em escala compatível com seus desafios.
No plano nacional, os bancos de desenvolvimento devem funcionar como tradutores das metas globais para o contexto interno, alinhando com as políticas nacionais. Isso significa estruturar linhas de crédito, fundos de investimento e programas estratégicos que materializem as diretrizes internacionais em políticas públicas, com foco em setores alinhados com a transição verde sustentável. Esses bancos devem ter plena inserção nos processos de planejamento e orçamento nacionais, além de autonomia técnica e financeira para desenhar soluções alinhadas às especificidades de cada país.
No nível regional e local, as instituições financeiras de desenvolvimento regional desempenham um papel de capilaridade e inteligência territorial. Elas estão mais próximas das comunidades, compreendem melhor as realidades locais e conseguem adaptar os grandes objetivos da transição a projetos viáveis no território.
A articulação entre os níveis global, nacional e regional é essencial para garantir a coerência estratégica e a eficácia territorial da transição verde-sustentável. Nesse arranjo, os bancos de desenvolvimento nacionais assumem papel de conectores institucionais: são eles que traduzem compromissos internacionais em políticas operacionais e articulam os planos federais com dinâmicas locais. Para exercer essa função, é fundamental que estejam também alinhados com o setor produtivo, contribuindo para a formação de expectativas positivas e orientadas à transição. Em um contexto de elevada incerteza que marcam esse processo, as expectativas exercem um papel decisivo na mobilização de investimentos e na definição das trajetórias econômicas. Quando os agentes econômicos percebem estabilidade institucional e coordenação estratégica entre políticas, instituições e objetivos de longo prazo, sentem-se mais dispostos a investir em setores emergentes, o que contribui para ativar ciclos virtuosos de crescimento econômico e transformação produtiva.
Elementos para uma Nova Arquitetura Financeira
A capacidade das IFDs de impulsionar a transição verde sustentável depende diretamente de uma reconfiguração do ambiente normativo, institucional e operacional no qual atuam. Para que desempenhem esse papel estratégico, pelo menos quatro pilares devem sustentar uma nova arquitetura financeira voltada ao interesse público.
Primeiro, é fundamental estabelecer um novo marco regulatório que incorpore de forma sistêmica os riscos climáticos, ambientais e sociais nos processos de avaliação financeira. Essa incorporação se dá por meio da revisão dos modelos de análise de risco, dos critérios de alocação de capital e das exigências prudenciais atualmente em vigor. Especificamente, isso implica atribuir pesos regulatórios diferenciados aos ativos com base em sua compatibilidade com a transição verde-sustentável: atividades ambientalmente danosas — como as intensivas em carbono ou destrutivas da biodiversidade — devem ser classificadas como exposições de alto risco, sujeitas a exigências de capital mais elevadas; ao mesmo tempo, setores estratégicos para a sustentabilidade devem contar com regras que reconheçam seus benefícios sistêmicos, mesmo diante de incertezas financeiras.
Esse redesenho normativo exige que os riscos relacionados ao clima, à perda de biodiversidade e à exclusão social sejam integrados aos marcos prudenciais — como os Acordos de Basileia — e às práticas de supervisão das autoridades monetárias e financeiras. A adoção de métricas específicas, como indicadores de emissões de gases de efeito estufa, vulnerabilidade ecológica e impacto social, deve fazer parte das metodologias de avaliação utilizadas por bancos centrais, reguladores e instituições financeiras. Essa transformação não busca restringir o crédito, mas orientar sua direção: trata-se de alinhar a estabilidade financeira à estabilidade ecológica e social, reconfigurando os incentivos do sistema financeiro para que ele atue como vetor da transição, e não como obstáculo a ela.
O segundo pilar é a garantia de capitalização estável e de longo prazo. Para que as IFDs possam operar com visão estratégica e capacidade de mudança estrutural, é essencial que contem com aportes de capital articulados com o Tesouro Nacional e com os Bancos Centrais. Esses aportes devem permitir que as instituições não dependam exclusivamente de captações no mercado, especialmente em momentos de instabilidade econômica.
Há mecanismos de capitalização com potencial de aplicação, ainda que condicionados a ajustes institucionais como a criação de fundos e mecanismos de estabilização climática, aportes diretos de capital por parte dos Tesouros Nacionais, bem como a emissão de títulos públicos vinculados a metas sustentáveis, são mecanismos relevantes de capitalização. Adicionalmente, os bancos centrais podem desempenhar um papel estratégico fundamental ao criar linhas específicas de liquidez voltadas à transição verde sustentável, oferecendo recursos estáveis e de baixo custo, condicionados ao cumprimento de critérios alinhados com a transição.
Para tanto, os bancos centrais devem assumir uma postura pró ativa na coordenação do crédito, recorrendo a instrumentos como o window guidance (orientação de janelas de crédito) e a reconta preferencial (preferential rediscounting), que permitem direcionar liquidez para áreas consideradas estratégicas para transição verde sustentável. Tais instrumentos já foram utilizados com sucesso pelo banco central japonês na reconstrução do pós segunda guerra.
O terceiro elemento é o fortalecimento institucional das IFDs. Por atuarem como centros de inteligência do Estado, as IFDs devem dispor de equipes técnicas capacitadas para planejar, financiar e avaliar investimentos alinhados à transição verde sustentável. Sua atuação exige domínio sobre finanças públicas, planejamento de longo prazo, inovação e avaliação de impacto. Para isso, é necessário investir em formação especializada e promover o intercâmbio técnico entre instituições. No âmbito da Convenção para o Desenvolvimento Sustentável, as IFDs não são apenas fontes de crédito, mas agentes estratégicos capazes de formular diagnósticos, identificar gargalos e estruturar soluções transformadoras para o desenvolvimento.
O quarto elemento é a articulação das IFDs com o planejamento estatal. Como instrumentos de políticas públicas, sua efetividade depende de operarem em sinergia com os demais órgãos e estratégias do Estado. A Convenção propõe que todos os instrumentos estatais estejam orientados por uma missão comum: a promoção da transição verde sustentável. Isso exige que políticas fiscais, monetárias, industriais e sociais estejam coordenadas e voltadas a esse objetivo. Nesse contexto, as IFDs são protagonistas no financiamento da transformação, mas sua atuação precisa estar integrada a uma ação estatal ampla, coesa e orientada por metas de longo prazo.
Esses quatro eixos — marco regulatório, capitalização, capacitação e integração institucional — compõem uma infraestrutura fundamental para reposicionar as IFDs como catalisadoras da transformação. Avaliá-las apenas por métricas financeiras é insuficiente. Seu impacto real deve ser medido pela sua capacidade de regenerar ecossistemas, reduzir desigualdades e transformar realidades locais em linha com um futuro comum mais justo e sustentável.
Conclusão: Implicações Políticas e Estratégias para um Novo Futuro
O reconhecimento do papel das IFDs como pilares centrais da transição verde sustentável implica uma série de mudanças políticas e institucionais. Não se trata apenas de melhorar mecanismos existentes, mas de reconfigurar a arquitetura do desenvolvimento a partir de um novo contrato econômico, social e ecológico, com base nos princípios da Convenção para o Desenvolvimento Sustentável.
Essa convenção propõe uma governança orientada por missões, que pode ser operacionalizada por meio da definição de metas nacionais vinculadas a acordos internacionais, da criação de consórcios intergovernamentais para execução de programas integrados, e da incorporação de critérios de sustentabilidade nas decisões orçamentárias e nas diretrizes dos bancos públicos de desenvolvimento e compromissos de longo prazo, articulando ações em três níveis interligados: multilateral, nacional e regional. Para que essa articulação funcione, é fundamental a construção de canais institucionais sólidos de cooperação e coordenação entre esses níveis.
A crise ambiental, climática e social exige mais do que respostas pontuais. Ela demanda uma mudança estrutural nas bases do nosso sistema de desenvolvimento, e essa mudança passa, necessariamente, pela transformação do sistema financeiro. As IFDs oferecem uma oportunidade concreta e estratégica para conduzir essa transformação. Com recursos adequados, autonomia institucional e orientação pública clara, elas podem ser o motor da transição para um futuro sustentável.
Não se trata de um ajuste marginal, mas de uma reconstrução profunda, como ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial com o Plano Marshall, quando investimentos públicos coordenados e uma arquitetura financeira robusta permitiram a reconstrução da Europa Ocidental em bases mais sólidas e integradas, que redefina o papel do Estado, reoriente o fluxo de capitais e reposicione o desenvolvimento como um bem coletivo e planetário. Assim como outras transformações históricas essa virada exige articulação, visão e coragem política. A hora de agir é agora — e as IFDs estão entre os protagonistas dessa virada histórica.