Pensamento ibero-americano

Revista da Secretaria-Geral Ibero-Americana


Autocratização, resiliência ou erosão democrática?

Yanina Welp

Investigadora Sênior do Centro Albert Hirschman para a Democracia (Suíça)

Introdução

Em As Paixões e os Interesses, Albert O. Hirschman lembrou a distinção fundamental de Maquiavel entre “a verdade real das coisas” e as “repúblicas e monarquias imaginárias que nunca foram vistas ou conhecidas por existirem”. A ciência política tem uma longa tradição de pesquisa empírica destinada a identificar “a verdade real das coisas”. No entanto, no estudo da democracia, o que realmente existe é cada vez mais analisado em relação a indicadores que nos permitem elaborar uma métrica refinada, mas também estática, sem história e limitada ao desempenho institucional. Atuando desse modo, o contexto e as condições que moldam as instituições são apagados visando quantificar seus resultados e ordenar os países em um ranking global, como fazem os índices Vdem, The Economist e Freedom House, entre outros. As críticas mais frequentes a esses índices referem-se aos componentes e procedimentos de coleta de dados. Aqui, se contemplam as consequências negativas que o domínio desse corte produz na conversa pública.

Não se trata de negar a utilidade dos índices de medição da democracia, mas de chamar a atenção para aquilo que não nos permitem ver e que esconde aspectos relevantes para encontrar soluções viáveis. Isso acontece porque perdemos de vista as variáveis que explicam como se alcança e evolui o equilíbrio dinâmico que permite o pluralismo e o Estado de Direito, que às vezes se adapta ou se perde e, sobretudo, a identificação das janelas de oportunidade para a resiliência e/ou abertura do sistema em um mundo interconectado.

Paradoxalmente, no período em que o Ocidente rejeita fortemente o etnocentrismo, a ciência política mainstream (convencional) subestima as condições históricas e mede o desempenho em relação a um padrão universal. Na verdade, a medida do ideal Ocidental. Ao mesmo tempo, a representação individual adquire um peso extraordinário, sugerindo uma relação causal quase direta, tão simples quanto superficial, entre um governo e o estado da democracia. Levado ao extremo, poderia ser formulado da seguinte forma: a erosão seria causada pelo surgimento de líderes com credenciais autoritárias que destroem as instituições da democracia para concentrar o poder aproveitando a agitação popular. Não se trata de negar o peso dessas (e de outras) lideranças, mas de ampliar a perspectiva para incluir as condições que permitem seu surgimento e que incentivam ou inibem sua ação, porque essas lideranças não surgem em todos os lugares e nem sempre têm sucesso onde quer que estejam presentes.

O texto reflexiona, primeiramente, sobre algumas limitações da abordagem voltada para a mensuração anual da qualidade da democracia com base em indicadores de desempenho institucional. Em seguida, identifica os principais desafios enfrentados pelos sistemas políticos na região latino-americana e termina com algumas reflexões.

 

Enriquecer o diálogo público sobre democracia

O foco dominante dos indicadores globais do estado da democracia ignora ou subestima os aspectos centrais do debate sobre a democracia. Estes referem-se a: (1) a qualidade da representação: grande parte dos cidadãos latino-americanos desconfia de seus governos e não se sente representada. Este é um calcanhar de Aquiles presente nas pesquisas, mas não nas medições da qualidade da democracia, (2) o contexto histórico: não é produtivo medir um sistema diante de um ideal inatingível, as condições em que a democracia se estabelece em um determinado ambiente devem ser consideradas, (3) a disputa pelo poder:  no debate público, os indicadores, direta ou indiretamente, incentivam a ideia de que a disputa pelo poder é uma anomalia, fato que, indiretamente, reforça o mito populista do líder providencial que vem salvar (e sua contraparte, destruir) a Nação, (4) as ideias: a disputa pelo poder é associada como claramente impulsionada por interesses espúrios, que também contribui a instalar uma ideia negativa (e errada) da política, como que despojada de princípios ideológicos. A continuação, comenta-se sobre o assunto com um pouco mais de detalhes.

Primeiro, a qualidade da representação (ligada, por sua vez, à igualdade política) vai além da medição do desempenho institucional. A democracia é um ideal normativo baseado no valor intrínseco atribuído à igualdade entre os seres humanos. Constitui-se através de uns princípios: pluralismo, liberdade de expressão, concorrência entre partidos, dentre outros, que se traduzem num conjunto de instituições que possibilitam o seu exercício. As eleições são centrais porque permitem legitimar o arcabouço legal que condiciona, organiza e limita o exercício do poder. Poderia considerar-se que as eleições são apenas um método, no entanto, baseia-se na expectativa de que um sistema inclusivo produzirá melhores resultados (entendidos em termos de qualidade de vida e satisfação com o sistema para todos os membros de uma comunidade política). Em outras palavras, seguindo a Robert Dahl (Sobre a igualdade política), espera-se que, se o sistema representa e articula interesses plurais, governar-se-á em benefício da maioria. A igualdade política é o que permitirá essa representação e articulação de interesses. A vista sobre o desempenho institucional não consegue capturar os déficits que podem ocorrer quando a política partidária deixa de representar uma parte considerável da população. Por essa razão, exemplificando, a maioria dos índices de qualidade da democracia mostrou o Chile como uma democracia forte, enquanto se formava uma profunda crise sociopolítica que tal abordagem não poderia registrar.

Em segundo lugar, o desempenho da democracia em um determinado momento reflete uma trajetória que supera em muito as lideranças. É o resultado de um andaime muito complexo de direitos e leis nem sempre coerentes, promovidos em diferentes momentos históricos e, inclusive, no mesmo momento em que forças de diferentes signos conseguem promover agendas contraditórias que, por sua vez, têm diferentes aplicações. A isso deve-se adicionar outros fatores sociológicos, econômicos e culturais, pois o desempenho da democracia depende de uma multiplicidade de variáveis, embora no debate público o foco seja colocado centralmente no governo e, em tempos de tensão, nas características individuais dos líderes.

Terceiro, a disputa de poder não é uma anomalia, mas a peça fundamental do jogo. Embora o sistema seja justificado por princípios normativos, os procedimentos que o colocam em operação – em seu desenho e em seu exercício – derivam de disputas de poder. Estes não foram aprovados em uma tábula rasa, discutindo os melhores modelos em abstrato, mas sim em um contexto histórico condicionado por relações de poder muito concretas (que operam em contexto como o acaso, que sempre faz a sua parte). Não é possível separar os ideais normativos do cálculo estratégico que impulsiona aqueles que defendem uma posição ou outra. Por isso, em situações críticas, os indicadores permanecem no meio do caminho em sua possibilidade de captar em profundidade as dimensões do problema e não permitem identificar formas de resolvê-lo (aconteceria, por exemplo, com o bloqueio produzido entre 2018 e 2024 à renovação do Conselho Geral da Magistratura na Espanha).

Em quarto lugar, a luta pelo poder também inclui uma disputa sobre uma visão do mundo. Existem argumentos e cálculos estratégicos para sustentar uma ou outra opção em relação ao poder e seu exercício. No entanto, a discussão contemporânea tende cada vez mais a reduzir o debate a um dilema moral que idealiza o passado e demoniza o presente, em que as alternativas são anuladas para substituí-las por uma única opção (em seu extremo, o bem contra o mal). Em nenhum lugar, isso é mais evidente do que no interesse pelo perfil psicológico dos líderes. Com isso, grande parte da análise contemporânea se limita a observar como os populismos (identificados com o autoritarismo) destroem “os valores aos quais aprendemos a aderir”. No entanto, os principais desafios enfrentados pelas democracias latino-americanas contemporâneas transcendem em muito a dimensão do desempenho institucional, enquanto essas lideranças são mais uma consequência do que uma causa do sistema político.

Visão geral da América Latina

A continuação, apresenta-se três dimensões nas quais estão localizados os principais desafios enfrentados pelos sistemas políticos latino-americanos e pelas democracias em particular. O primeiro refere-se à organização do poder político, o segundo aos desafios internos e externos enfrentados pelo Estado e o terceiro à convivência cívica e à construção de legitimidade essencial para manter a adesão da comunidade política. (Identificados como desafios transversais, mas qualquer revisão da realidade dos diferentes países mostrará enormes diferenças entre os casos).

A organização do poder político

Os três eixos fundamentais sobre os quais gira a organização do poder político referem-se às eleições, à divisão de poderes e à capacidade de governar. Quanto ao primeiro, todos os países da região (exceto Cuba) continuam conduzindo processos eleitorais. Em um pequeno grupo de países não há processos competitivos e justos (Nicarágua, Venezuela), enquanto em outros as condições de concorrência foram seriamente prejudicadas nos últimos anos (com características diferentes, em El Salvador e na Guatemala). Assim, vemos que as eleições continuam sendo a principal ferramenta de organização do poder político (algo que será matizado na próxima subseção) e possuem um papel dominante. Além disso, entre os países onde os processos são deficientes, as tendências não são inequívocas. Se a Nicarágua está entrincheirada em uma situação cada vez mais opressiva, o processo eleitoral venezuelano oscila entre um regime que busca se agarrar ao poder por métodos ilegais, mas é forçado a conviver com uma oposição que continua buscando fortalecer sua capacidade de recuperar o poder. Enquanto em El Salvador, Bukele avança em cooptação institucional com amplo apoio popular, na Guatemala a confluência de mobilização interna e apoio internacional levou Bernardo Arévalo à presidência. Outra questão a considerar é o avanço da narrativa de fraude eleitoral que, na esteira de Donald Trump em 2020, Jair Bolsonaro no Brasil e Keiko Fujimori no Peru tentaram instalar. Os perdedores ameaçaram não admitir a derrota. As instituições foram ativadas em todos os casos e as denúncias (às vezes mais midiáticas do que legais) não prosperaram, embora seu impacto negativo não possa ser subestimado, deteriorando a confiança nos órgãos eleitorais.

Quanto à divisão de poderes, muitos países enfrentam desafios de diferentes tipos (Argentina, México, Peru, El Salvador, etc.), mas isso não parece levar a uma tendência geral à deterioração, mas a um padrão mais ou menos constante de tensões entre potências que assumem características distintas em momentos diferentes, como a experiência argentina poderia ilustrar.

Uma última questão refere-se à governabilidade. A confluência entre reformas que incentivaram a criação de novos partidos e a nomeação de candidatos independentes (México, Equador, Panamá, entre outros) com a volatilidade das preferências e o desencanto dos cidadãos gerou uma fragmentação crescente (mais partidos e menor taxa de sobrevivência). Nesse contexto, há uma tensão entre os países nos quais o poder está concentrado (El Salvador, como exemplo proeminente) e outros em que a fragmentação dificulta a governabilidade (Equador, Peru). Em seguida, serão analisados outros desafios estruturais ao exercício do poder político que afetam o próprio Estado.

O desafio ao Estado

Por que é tão difícil aprofundar a democracia? Mainwaring e Pérez Liñan apontaram três razões: primeiro, a expansão de grupos poderosos, como o crime organizado, que estabelecem alianças de interesses com forças policiais não reformadas e interesses que pertenciam à antiga coalizão governante autoritária. Em segundo lugar, a má governança faz com que a insatisfação com a democracia se espalhe na maioria dos países, abrindo caminho a populistas autoritários antissistema e, em terceiro lugar, “estados híbridos” que violam os direitos dos cidadãos, não fornecem segurança de qualidade e serviços públicos e são, em parte, capturados por poderosos interesses privados.

Assim, um dos principais desafios enfrentados pelos países latino-americanos refere-se às crescentes dificuldades enfrentadas pelos Estados em controlar o território e manter uma presença ativa e efetiva na prestação de serviços públicos. O monopólio da violência é desafiado pela presença de redes criminosas (Equador, México, Colômbia, Venezuela, entre outras, que incluem países que até recentemente pareciam imunes a essa ação, como Uruguai e Chile). Também é limitado pela escassez de recursos econômicos e práticas clientelistas que inibem ou limitam a formação de uma administração pública capaz e eficiente. Um risco adicional é o da cronificação da instabilidade na disputa pelo poder e da validade de eleições cada vez mais injustas. Isso ocorre porque, para consolidar um regime completamente fechado, as elites autoritárias devem eliminar todas as principais fontes de contestação por meio de repressão ou cooptação sistemática, e isso requer coesão da elite e um aparato estatal minimamente eficaz. Menos recursos e o enfraquecimento das forças de segurança enfraqueceriam os recursos disponíveis para sustentar a autocratização, mas inibiriam a democratização. A perspectiva, em suma, é de estagnação dos regimes híbridos.

Legitimidade, polarização e convivência

Finalmente, mais um elemento que não deve ser perdido de vista refere-se a uma das consequências da polarização na esfera pública. Muita ênfase tem sido dada à incerteza sobre os resultados eleitorais como um elemento distintivo da democracia, porém, outra forma de incerteza que tem um lugar fundamental refere-se ao curso a ser seguido ou às opções propostas para a governança. Onde há dúvidas, há espaço para debate, para mudar opiniões e aproximar posições. Diante da vontade popular unânime de Rousson, a democracia precisa de pluralismo e incerteza, o oposto de posições rígidas e convicções monolíticas. A polarização extrema ou polarização afetiva completa a moralização do debate público e sufoca a possibilidade de deliberação democrática. É um quadro muito mais precário e flexível que pode permitir as condições para sustentar a democracia, muito longe dos valores abstratos e ascéticos levantados a partir do ideal democrático.

Reflexões Finais

Enquanto alguns alertam sobre retrocessos autoritários, outros pedem cautela diante de evidências e trajetórias com diferentes significados: a região está enfrentando um momento de resiliência ou erosão? A resposta depende do período de tempo gasto e da abordagem. Aqui, argumentou-se que focar toda a conversa em indicadores de desempenho institucional é de pouca utilidade para identificar as origens das tensões enfrentadas pelas democracias. Os regimes políticos latino-americanos mostram que a tentação de concentrar o poder não é de poucos, mas uma prática generalizada e evidente nas reformas constitucionais para acumular poder e promover reeleições. Em relação a isso, não há grandes diferenças entre esquerda e direita. Enquanto alguns países enfrentam desafios à governabilidade devido à fragmentação dos partidos e à volatilidade das preferências, outros enfrentam desafios ao pluralismo devido à concentração de poder em poucas mãos. Em ambos os casos, o poder do Estado é desafiado pela presença de redes criminosas e pela falta de recursos econômicos e outros que permitam a implementação de políticas públicas que respondam às necessidades da população. Nesse contexto, a polarização torna-se uma estratégia fundamental das lideranças disruptivas (Bukele, Milei, López Obrador) para sustentar a adesão cidadã, enquanto as velhas práticas dos Estados semi-patrimoniais dificultam a credibilidade da narrativa da defesa da democracia pela oposição. A isso deve-se acrescentar que nem todos os que estão na oposição têm credenciais democráticas, enquanto a fragmentação dos partidos, a volatilidade das preferências e a atomização da sociedade civil dificultam a democratização. Nesse contexto, a agenda para fortalecer e apoiar a democracia deve colocar o desenvolvimento (1) e a luta contra o crime organizado (2) no centro, sem negligenciar a observação eleitoral que contribui para sustentar a confiança nos processos eleitorais (3) e a representação da comunidade como forma de combater a desconfiança interpessoal e institucional (4).

Yanina Welp : Investigadora Sênior do Centro Albert Hirschman para a Democracia (Suíça) e cofundadora da Rede de Cientistas Políticos. Foi codiretora do Centro Latino-Americano de Zurique da Universidade de Zurique (Suíça). É doutora em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Pompeu Fabra (Espanha) e licenciada em Ciência Política e Ciências da Comunicação Social, ambas pela Universidade de Buenos Aires (Argentina).

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