Vivemos tempos de profunda transformação. O mundo atravessa uma fase marcada por crescentes tensões geopolíticas, fragmentação econômica e avanços tecnológicos vertiginosos. Essas mudanças estão redefinindo o comércio internacional, as cadeias de valor e as formas pelas quais os países interagem. Em meio a essas novas regras do jogo, a América Latina e o Caribe, com seu capital natural, diversidade biológica e potencial humano, enfrentam os desafios de fechar lacunas históricas e outras de gestação recente, bem como a retomada de seu caminho de crescimento.
É neste contexto que a Quarta Conferência sobre Financiamento do Desenvolvimento, a ser realizada em Sevilha, em julho de 2025, procura impulsionar os investimentos em larga escala nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), repensar a arquitetura financeira global, reforçar a solidariedade internacional e o multilateralismo. Para nossa região, é essencial reduzir os custos de financiamento e melhorar a gestão da dívida, especialmente naqueles países onde o serviço da dívida limita o espaço fiscal, para promover o investimento no desenvolvimento sustentável.
A América Latina e o Caribe caracterizam-se pelos seus contrastes. É uma das regiões mais biodiversas do mundo, mas também uma das mais desiguais; tem um fornecimento competitivo de energia limpa, mas ainda enfrenta um atraso econômico e social significativo e baixos níveis de produtividade. Essa dupla face torna-se ainda mais desafiadora em um contexto em que as crises – econômicas, sanitárias, climáticas – já não são episódios isolados, mas fenômenos recorrentes e sobrepostos que interagem entre si.
Os países que a compõem estão atrelados entre uma necessidade crescente de investimento para financiar o desenvolvimento e outras demandas emergentes, e um espaço fiscal cada vez mais limitado. Nas últimas décadas, a dívida pública como proporção do PIB cresceu rapidamente ao nível global. No entanto, entre 2010 e 2023, sua taxa de expansão na América Latina e no Caribe supera significativamente a dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, o peso da dívida externa na região também aumentou, passando de 25% da dívida pública total em 2010 para 32% em 2022. Essa mudança na composição aumenta a exposição dos países a choques de demanda global e a crises de volatilidade da taxa de câmbio.
A pandemia marcou um ponto de quebra nessa trajetória. Após um ciclo de empréstimos baratos impulsionados por políticas monetárias expansionistas, iniciou-se um período de acanhamento monetário, aumentando drasticamente o custo do acesso ao mercado e do serviço da dívida. Em média, os pagamentos de juros na região representaram 15% da receita tributária líquida em 2023, em contraste com os 5% observados nos países desenvolvidos.
Nesse cenário, a persistência de taxas elevadas de juros reais poderia prolongar os custos dos empréstimos, afetando ainda mais o espaço fiscal, limitando o investimento público e reduzindo a margem de manobra diante de futuras crises. As perspectivas de crescimento, em muitos casos abaixo do custo do financiamento, agravam essa dinâmica.
Uma arquitetura financeira internacional alinhada com o presente
Para somar-se aos problemas já descritos, a atual arquitetura financeira internacional, com regras desenhadas em outro momento histórico, não contribui com a agilidade ou escala necessárias para enfrentar os desafios estruturais de nossos países. As instituições financeiras multilaterais – embora tenham sido pilares fundamentais da estabilidade econômica global, fornecendo financiamento, apoio técnico e consultoria aos países em desenvolvimento – devem se adaptar às crises e desafios interconectados enfrentados pelos países em desenvolvimento. As crises sistêmicas das últimas décadas testaram seus instrumentos, seus modelos de governança e sua capacidade de mobilizar recursos, obrigando-o a repensar e reformar os fundamentos do sistema, com critérios de equidade, eficiência e resiliência.
O fortalecimento dos bancos regionais não é um slogan retórico. É uma resposta concreta às lacunas do sistema atual. Nesse contexto, instituições regionais como CAF – Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe – representam uma alternativa sólida e em expansão, com uma série de atributos que lhes permitem ir além da tradicional oferta de financiamento.
Fundado em 1968 por seis países andinos, hoje conta com 23 países acionistas e está a caminho de se tornar o banco de desenvolvimento com maior cobertura na América Latina e no Caribe. Em seus mais de 50 anos de existência, CAF financiou mais de 230.000 milhões de dólares em projetos de desenvolvimento, contribuindo de forma tangível para melhorar a qualidade de vida de milhões de latino-americanos e caribenhos.
Um de seus principais atributos é sua estrutura de governança. Ao contrário de outros bancos multilaterais de desenvolvimento, onde as decisões estratégicas são geralmente condicionadas pelo peso dos países doadores – e onde a América Latina e o Caribe têm uma representação multilateral limitada – CAF é uma instituição com vocação regional, na qual os países da América Latina e do Caribe desempenham um papel de liderança na definição de suas prioridades.
Opera sob um modelo cooperativo que permite uma tomada de decisão mais equilibrada, sensível às diferentes realidades nacionais e com capacidade de atuar com agilidade diante dos desafios em constante mudança. Além disso, seu modelo de capitalização tem se mostrado estável e previsível, sem depender de contribuições condicionais ou sujeito a mudanças de orientação política por parte dos grandes acionistas. Um exemplo disso é a aprovação pelo Conselho de Administração CAF de um aumento de capital de US$ 7.000 milhões, o maior da história da instituição, ocorrido em 2024, em Cartagena. Essa estabilidade reforça sua capacidade de acompanhar os países da região de forma sustentada, mesmo em contextos de incerteza ou de redefinição de parcerias multilaterais.
CAF também tem um escopo significativo para aumentar a escala. Em 2024, as necessidades de financiamento da América Latina e do Caribe foram estimadas em cerca de 13% de seu produto interno bruto. No entanto, o financiamento multilateral representou apenas 5% desse total, e dentro dessa parcela CAF tem uma participação de 12% (conforme o Monitor Fiscal CAF, com base em fontes nacionais).
Conhecimento do terreno
Essas cifras refletem não apenas o espaço disponível para crescer, mas também o potencial de uma instituição que pode aumentar seu impacto com ferramentas mais adaptadas e maior proximidade operacional. As parcerias com outras agências fundamentais para o desenvolvimento da nossa região são de vital importância para construir verdadeiras plataformas para mobilizar recursos e alinhar o trabalho entre diferentes atores. Podemos destacar o trabalho realizado com o PNUD na área da pobreza multidimensional ou na área da governação para o desenvolvimento, permitindo-nos reforçar as capacidades dos nossos países; ou com a Organização Pan-Americana da Saúde em projetos de infraestrutura e saúde, e no combate a doenças como a malária, para melhorar a qualidade de vida e promover a integração regional.
Esse conhecimento do terreno se traduz em soluções concretas. CAF desenvolveu instrumentos que respondem às particularidades da região. Dentre estes, destacam-se desde linhas de crédito estruturadas para apoiar reformas institucionais, até financiamento a governos subnacionais, um nível de governo tradicionalmente excluído do financiamento internacional. Por meio do trabalho direto com municípios e províncias, CAF contribui para fechar as lacunas de investimento em infraestrutura social, mobilidade, água e saneamento, aproximando o desenvolvimento onde é mais necessário. Também financia projetos binacionais de logística e integração energética, promove cadeias de valor regionais e acompanha agendas de inovação e digitalização em países como Paraguai, Colômbia, Uruguai e República Dominicana, entre outros – exemplos que ilustram sua capacidade de transformar aspirações de desenvolvimento em resultados tangíveis.
CAF também tomou medidas firmes em relação ao uso de Direitos Especiais de Giro (DEGs), uma base transversal na discussão sobre reformas na arquitetura financeira internacional. Desde fevereiro de 2023, é detentora autorizada de DEGs, o que lhe permite não só receber esses ativos e convertê-los em divisas por meio de troca voluntária entre os países membros, mas também participar de operações financeiras, incluindo empréstimos, liquidação de obrigações financeiras, SWAPS, penhores, transferências como garantia, entre outras, para canalizar recursos para projetos que atendam às prioridades de seus países membros. Em um momento em que muitos países da região enfrentam severas restrições de liquidez, essa capacidade potencialmente abre uma porta adicional para mobilizar recursos sem condicionalidades ou altos custos.
Um dos eixos mais ambiciosos da estratégia institucional CAF é sua transformação em banco verde da região, objetivo que se mantém na situação atual. O banco estabeleceu a meta de que, até 2026, pelo menos 40% de suas aprovações sejam verdes, incluindo financiamento em áreas como transição energética e proteção da biodiversidade. Também está avançando em outros compromissos, como o financiamento de até 1.250 milhões de dólares em economia azul e saúde dos oceanos; aprovar US$ 15 bilhões para adaptação às mudanças climáticas e gerenciamento de risco de desastres até 2030; e canalizar 2.000 milhões de dólares para a proteção da Amazônia no período 2023-2030.
Nessa lógica de expansão estratégica, CAF aprofundou seu papel de catalisador e mobilizador de recursos financeiros, visando maximizar o impacto de suas operações e reduzir o persistente déficit de investimentos. Por meio de esquemas de cooperação que otimizam o financiamento concessional, viabiliza investimentos diante de crises globais e promove respostas concertadas. Em parceria com fundos verdes e atores globais, articula mecanismos de cofinanciamento projetados para enfrentar desafios de alto impacto social e ambiental.
O setor privado também é fundamental para o crescimento econômico, a criação de empregos e a inovação. Por isso, o CAF trabalha ativamente para construir um ambiente propício que incentive a mobilização de recursos a partir dessa esfera. Assim, fortaleceu instrumentos para viabilizar e mobilizar o investimento privado, essencial para escalar o financiamento sustentável, por meio da estruturação de veículos de cofinanciamento com bancos comerciais internacionais, fundos de impacto e instituições financeiras de desenvolvimento. Desde 2022, essa estratégia mobilizou mais de 5.200 milhões de dólares de terceiros, triplicando em média a contribuição direta do banco para essas operações e consolidando uma configuração financeira que integra os setores público e privado em prol do desenvolvimento regional.
Além de tudo isso, CAF oferece soluções financeiras inovadoras, projetadas para se adaptar aos objetivos de gestão da dívida e às necessidades específicas de seus países-membros. Entre essas alternativas está a possibilidade de oferecer financiamento em moeda local ou outras moedas diferentes do esquema tradicional, reduzindo a exposição aos riscos de câmbio. Também possui esquemas de amortização flexíveis, que permitem que os pagamentos sejam ajustados com base na ocorrência de eventos inesperados ou desastres naturais previamente estabelecidos no contrato.
Outro instrumento de destaque é o Crédito Integral Vinculado aos Objetivos Climáticos e Sociais (PIVOC), por meio do qual CAF oferece incentivos financeiros concretos aos países que superarem as metas climáticas e/ou sociais pré-acordadas. Ao mesmo tempo, premia projetos totalmente verdes com maior concessionalidade, reforçando seu papel como facilitadores da transição sustentável na região.
Em um mundo que tende a se segmentar em blocos, onde a cooperação internacional enfrenta tensões e a arquitetura financeira global está em processo de redefinição, também se abre uma janela de oportunidade para repensar o papel da região no cenário global, com mais representatividade e melhores soluções partindo da América Latina e do Caribe. Para fazer isso, a região precisa de sua própria voz coordenada. CAF está em uma posição privilegiada para articular essa voz, conectar as prioridades nacionais com as agendas globais e projetar para o mundo uma região que, longe de ser apenas receptora de soluções, apresente propostas e capacidade de liderança. Ser uma ponte para as Américas também significa isso, facilitar a convergência em meio à fragmentação e transformar o potencial regional em uma agenda de desenvolvimento compartilhada.