Pensamento ibero-americano

Revista da Secretaria-Geral Ibero-Americana


Enterrados na dívida

Patricia Miranda

Diretora de Incidência Global e Coordenadora da Área de Nova Arquitetura Financeira, LATINDADD

Situação da dívida no Sul e América Latina 

A dívida nos países do Sul é histórica. Ela faz com que a relação de poder entre credor e devedor se perpetue, caracterizando os países devedores principalmente como dependentes da extração de recursos naturais e com pouca capacidade de aumentar sua arrecadação fiscal, enquanto os credores são países ou empresas privadas com excedentes de capital em busca de rentabilidade.

A crise da dívida externa da década de 1980 na América Latina é um exemplo que começa após uma massiva afluência de capitais na forma de créditos bancários nos anos 70. Tratava-se de um setor com excesso de liquidez que procurou possibilidades de investimento lucrativas em países em desenvolvimento latino-americanos e de outras regiões do Sul.

A estrutura da arquitetura financeira internacional e do sistema econômico global gerou um endividamento externo nos países do Sul para cobrir “necessidades” importantes, principalmente déficits na balança de pagamentos, gastos com infraestrutura (estradas, represas, hidrelétricas, etc.) e, ultimamente, projetos para mitigação das mudanças climáticas.

Essa mesma estrutura limita a mobilização de recursos fiscais e gera um círculo vicioso de extrativismo, clima e dívida, onde os países da região acabam se endividando para se adaptar a um clima que não geraram e extraem mais recursos naturais para pagar essa dívida. Os crescentes déficits fiscais foram sendo fechados também com outros tipos de dívida, como a dívida interna, contingente, oculta e em outros níveis de governo, como a dívida subnacional de governos locais ou a de empresas estatais descentralizadas.

Considerando que a dívida é uma forma de trazer para o presente recursos do futuro para, por exemplo, desenvolver projetos ou grandes obras que, de outra forma, um país não poderia financiar, deve-se considerar também seu impacto intergeracional.

Para a América Latina, a classificação atual de praticamente todos os seus países como de renda média tem também um impacto no acesso ao financiamento, já que a concessionalidade se reduz e as políticas de renegociação de dívida são diferentes. Após a pandemia da COVID-19, as políticas para adiar temporariamente o problema da dívida foram focadas nos países de renda baixa, excluindo os latino-americanos.

Considerando que a dívida é uma forma de trazer para o presente recursos do futuro para, por exemplo, desenvolver projetos ou grandes obras que, de outra forma, um país não poderia financiar, deve-se considerar também seu impacto intergeracional.

Os níveis de endividamento no mundo têm uma tendência a aumentar ano após ano, alcançando cada vez um novo pico. Em 2023, foi de 97 trilhões de dólares, dos quais 30% são de países em desenvolvimento e o restante de países desenvolvidos. Uma diferença entre a dívida de ambos é a relação restritiva da política monetária e fiscal. A dívida pode ser considerada insustentável e levar um país de renda média-baixa a um calote muito antes de alcançar um indicador de Saldo Dívida/PIB de 100%, ao contrário de um país do G7, cujos saldos ultrapassam esse percentual. O alto nível de dívida dos países desenvolvidos tem, além disso, um impacto nas taxas de juros globais, afetando negativamente o custo para os demais.

Renegociações de dívida e suas desigualdades

Quase todos os países da América Latina passaram por uma crise financeira com problemas de endividamento desde o século XVIII, tendo que recorrer a processos de renegociação. Essas crises foram principalmente de dívida externa, de balança de pagamentos e bancárias, todas inter-relacionadas. Elas ocorreram após períodos de grandes entradas de capital na região, devido a um excedente de liquidez em países, geralmente credores. As crises de dívida mais marcantes foram as da década de 1930, com os detentores de títulos, a de 1980, devido à dívida com os bancos e ao aumento significativo das taxas de juros, e casos posteriores de países com altos níveis de endividamento seguidos de calote.

A cada dez ou vinte anos, algum país da região precisou renegociar sua dívida externa. Esses processos foram variados: moratória, anulação de uma parte ou cortes (perda) no estoque de dívida, reestruturação da dívida por meio de mudanças nas condições financeiras e prazos, recompra de dívida (especialmente com títulos), trocas de dívida e perdão de dívida.

Nos processos de renegociação, nem todos os atores são iguais. A distribuição das perdas é definida de acordo com o poder relativo dos negociadores. A renegociação tem sido caracterizada por devedores que negociam individualmente e credores (bancos, governos e o Fundo Monetário Internacional) que negociam como um grupo.

A crise da dívida dos anos 1980 na América Latina teve várias tentativas de renegociação, culminando em uma década perdida para a região e afetando principalmente a população mais pobre e vulnerável. Ao contrário, no final desse período, o setor bancário se recuperou e, no início dos anos 1990, já prosperava, com um aumento no preço de suas ações. As transferências líquidas foram negativas, já que as saídas de capital dos bancos, juntamente com os pagamentos de juros e dividendos, superaram amplamente as entradas de financiamento.

O papel do FMI tem mudado, no entanto. Sempre foi credor e, ao mesmo tempo, coordenador das renegociações de dívida, incorporando acordos com medidas de consolidação fiscal, também conhecidas como políticas de austeridade ou condicionalidades, projetadas para incluir metas fiscais, como redução do déficit, aumento da arrecadação tributária (em muitos casos com impostos regressivos), cortes no gasto social e priorização do pagamento da dívida.

Como a necessidade de renegociar a dívida é recorrente, há diferentes espaços e grupos de credores que se organizam para esse fim, como o Clube de Paris, o Clube de Londres, e iniciativas como as aplicadas a países ou grupos específicos por meio de acordos com o FMI (incluindo condicionalidades), como o perdão de dívida a países pobres e altamente endividados (HIPC, na sigla em inglês) ou a Iniciativa de Alívio da Dívida Multilateral (MDRI, na sigla em inglês). Até os planos Baker e Brady lançados pelos Estados Unidos receberam apoio de outros países credores.

Vale destacar a experiência conhecida como o Clube dos Devedores, entre 1983 e 1985, iniciada em Quito e ratificada no Consenso de Cartagena. Naquela época, sete países da região se reuniram para exigir coletivamente o estabelecimento de princípios de corresponsabilidade entre credores e devedores, com redução das taxas de juros nas renegociações, maiores prazos de vencimento, acesso a fluxos de financiamento e vinculação do serviço da dívida externa às exportações. Eles também se comprometiam a honrar a dívida e as políticas de ajuste fiscal. Os credores viam com ceticismo o Clube dos Devedores, que, embora tenha desaparecido, ao menos colocou o problema político da dívida em pauta.

As iniciativas de perdão coordenado, como o HIPC e o MDRI, resultaram na redução de 100 bilhões de dólares da dívida para 37 países pobres e endividados da América Latina, Caribe e África, com o compromisso de que esses recursos fossem destinados a planos de redução da pobreza.

A anulação da dívida é sem dúvida a melhor opção para um país endividado. Um dos casos mais notáveis é o da Alemanha, que, sob o Acordo de Londres em 1953, obteve 50% de anulação de sua dívida, 206 bilhões de dólares, com credores do Clube de Paris, mas também com países do Sul como Argentina, Zâmbia e Paquistão (que atualmente enfrentam problemas de dívida), e sem condicionalidades. Naquele momento, o peso da dívida da Alemanha representava 25% de sua receita, muito abaixo do percentual de alguns países que atualmente estão em crise de dívida, com 40% ou mais.

Contexto e problemática atual na América Latina

A dívida tem uma tendência crescente no mundo, e a América Latina e o Caribe não são exceções. Por outro lado, ela agora tem uma conotação mais fiscal do que de balança de pagamentos, diferentemente da última crise de dívida. Após a pandemia, observou-se um aumento da dívida pública de 67% para 76% do PIB entre 2019 e 2020 (Gráfico 1). Em 2023, atinge 74%, com perspectivas de continuar crescendo.

Embora a dívida nos países da região seja heterogênea, entre os aspectos comuns está o alto custo do serviço da dívida pública. De acordo com os dados do Debt Service Watch, a América Latina destina 35% de seus rendimentos tributários para o pagamento da dívida, o que equivale a quase o dobro do gasto com educação, o dobro do gasto com saúde e o mesmo valor em proteção social.

O panorama da dívida mudou. A carteira de dívida externa é composta por 6% de credores multilaterais, 23,3% de credores bilaterais e 70,7% de credores privados (detentores de títulos soberanos). Essa realidade é semelhante em outras regiões do Sul, o que torna os processos de renegociação mais complexos. Os “clubes” de credores e o FMI formam agora uma minoria. Os detentores de títulos, que são grupos de investidores do setor privado, não seguem a hierarquia da arquitetura financeira internacional.

Outro aspecto em comum é o aumento da dívida interna. Em 9 de 17 países da América Latina, a dívida interna é maior do que a dívida externa em 2023. As taxas de juros são geralmente mais altas quando emitidas em moeda nacional, no entanto, é cada vez mais complexo distinguir se o detentor final dos títulos reside no país ou no exterior. Esse tipo de dívida costuma ser pago com roll-overs contínuos, embora, dependendo do tamanho do mercado nacional e da situação econômica, a demanda nem sempre cubra a oferta. Os principais credores da dívida interna são o sistema financeiro nacional e os fundos de pensões.

Fonte: FMI

As taxas de juros aumentaram após a pandemia, como parte das políticas do Federal Reserve dos Estados Unidos, o que encareceu significativamente a dívida contraída naquele momento. Em dezembro de 2023, o interesse da dívida externa total que a América Latina paga equivale a 6,4% das exportações, tornando-se a região do Sul com o maior índice em comparação com a África (6,2%) e a Ásia Oriental e Pacífico (3,4%).

As taxas de juros mais altas para os países do Sul, e em particular para a América Latina, também são afetadas pelas classificações de crédito. Durante a pandemia, os riscos aumentaram para todos os países e, como resultado, as classificações dadas pelas agências de classificação de risco (CRA, na sigla em inglês) diminuíram. O impacto dessas agências é ainda maior. Por exemplo, quando o Equador realizou uma consulta nacional à sua população e venceu a iniciativa de não extrair e não explorar recursos naturais das reservas de Yasuní e Chocó Andino, as CRAs alertaram sobre o risco de uma redução na classificação de crédito do país.

A dívida tem grandes chances de continuar aumentando, especialmente por um aspecto sistêmico, onde a evasão e elisão de recursos fiscais representa 6,1% do PIB e as necessidades de financiamento são maiores para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a adaptação frente às mudanças climáticas e uma transição energética justa.

Políticas globais de dívida excluíram a América Latina

Após a pandemia, as políticas globais de dívida lançadas pelo G20 e implementadas pelo FMI não chegaram à América Latina. A Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DDSI, na sigla em inglês) apenas postergou o problema por dois anos, e o Marco Comum para o Tratamento da Dívida (CF, Common Framework em inglês) esteve longe de alcançar os resultados necessários para os países que recorreram a essa opção de renegociação. Isso demonstra a validade da frase utilizada nos âmbitos de dívida: “too little, too late” (muito pouco, muito tarde), já que não foi estabelecido um sistema capaz de abordar o problema de forma oportuna, ágil e com alcance relevante. São medidas de curto prazo que não resolvem o problema estrutural e que não viabilizam a sustentabilidade da dívida a médio e longo prazo.

Adicionalmente, foi criada uma Mesa Redonda de Dívida Soberana (GSDR, na sigla em inglês), e foi promovida uma avaliação do CF. No entanto, fazer mudanças específicas ou cosméticas nesta iniciativa não conseguirá o impacto necessário, pois há uma falha de origem: ela está centrada no credor. Ou seja, não é um processo independente onde o árbitro não seja o credor. Não é oportuno iniciar um processo de renegociação antes do sobre-endividamento e da incapacidade de pagamento. Não é transparente porque o devedor não tem acesso a todas as informações. Não é vinculante porque as decisões tomadas são opcionais para vários grupos de credores (multilaterais e privados). Não é integral porque não abrange, desde o início, o total da dívida pública e seus riscos (incluindo a dívida interna e outros). Portanto, mantém as assimetrias entre credores e devedores e perpetua os impactos negativos da dívida sobre a população.

A Análise de Sustentabilidade da Dívida (DSA, na sigla em inglês) é uma ferramenta chave para definir de forma oportuna a magnitude e urgência do problema. No entanto, medir a capacidade de pagamento de um país ou o ajuste necessário para priorizar o pagamento da dívida continua sendo o principal uso, sendo, em muitos casos, excessivamente otimista em suas projeções, como o caso da Argentina e seu alto crédito com o FMI, quando na realidade a dívida do país não era sustentável.

A resolução da dívida neste contexto não deve abordar apenas a capacidade de pagamento no curto prazo, considerando que a maior parte dos países com problemas de endividamento tem um problema de liquidez na última década. Portanto, deve-se abordar simultaneamente a liquidez e a solvência. Soluções atuais, como os troques de dívida ou a suspensão do serviço da dívida, caem nesse engano de falsas soluções.

A necessidade de financiamento concessional ou não reembolsável continua sendo permanente para países de renda média. Nos últimos anos, a única política de financiamento sem dívida disponível para esse grupo de países tem sido a emissão de Direitos Especiais de Giro (DEG, ou SDR, na sigla em inglês), que têm sido usados para fins fiscais por países da África e América Latina. Embora sua distribuição não seja equitativa, já que se baseia nas cotas dos países no FMI, seu uso tem sido progressivo.

Reformas necessárias a nível global e nacional

A dívida não é ruim por si mesma, é uma fonte de financiamento para o desenvolvimento. No entanto, a arquitetura da dívida necessita de uma reforma urgente, sendo uma peça importante do quebra-cabeça da Arquitetura Financeira Internacional. Ela é e será um aspecto chave na próxima conferência de Financiamento para o Desenvolvimento de 2025 e em outros espaços globais nos próximos anos. Esta reforma deve contribuir para:

  • Alcançar a Agenda 2030 e além.
  • Implementar a agenda climática, em particular para financiar a adaptação e transição energética com financiamento não reembolsável para o Sul global.
  • Cumprir os direitos humanos e os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC).
  • Reduzir as desigualdades.
  • Eliminar o ciclo vicioso e a espiral da dívida.
  • Alcançar um sistema econômico e financeiro onde a dívida não seja um mecanismo geopolítico para exercer poder dos credores sobre os devedores.

É necessária uma reforma a ser implementada do âmbito global ao nacional, por meio de uma Convenção Quadro de Dívida Soberana nas Nações Unidas, que envolva processos a serem definidos por todos os países:

  1. Mecanismo de resolução da dívida independente, oportuno, transparente, vinculante, sustentável e com prestação de contas para a renegociação da dívida, que inclua anulação ou alívio para países de baixa e média renda, com base nas necessidades identificadas.
  2. Princípios de Financiamento Responsável, corresponsável entre credores e devedores.
  3. Análise de Sustentabilidade da Dívida integral (incluindo a dívida interna), com indicadores adicionais, como o serviço da dívida em relação à arrecadação fiscal, alternativa (não apenas o FMI, mas também a UNCTAD poderia realizá-la), transparente (para credores e devedores, incluindo parlamentares) e participativa (com os atores dos países endividados, viabilizando a prestação de contas).
  4. Além das atuais observações sobre a metodologia e transparência das agências de classificação de crédito, é necessária uma agência multilateral independente para classificar os países.
  5. Reduzir o custo da dívida, com iniciativas como melhorar o perfil da estrutura dos créditos, eliminar os encargos adicionais do FMI e reduzir a dívida dos países desenvolvidos para evitar a transferência de seus custos por meio de altas taxas de juros para os outros países.
  6. Incorporação de cláusulas de dívida em caso de catástrofes naturais ou outros choques, como o da pandemia.
  7. Estabelecimento de um registro global de dívida.
  8. Legislação nacional para países credores e devedores, para evitar futuros riscos, como, por exemplo, os fundos especulativos.

Adicionalmente, algumas outras peças-chave da arquitetura financeira internacional que necessitam de reforma para acompanhar uma visão sistêmica:

• Reforma das instituições financeiras internacionais em relação à sua governança, onde as cotas do FMI respondam às contribuições atuais dos países, zelando para proteger a participação dos países de baixa renda. 

• Reforma dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, não apenas para que sejam maiores, melhores e mais eficazes, mas também para que abandonem o business-as-usual na priorização do financiamento do setor privado e o de-risking em detrimento dos interesses do setor público.

• Acesso a financiamento concessional, critérios alternativos de vulnerabilidades, incluindo novas emissões de DEG, desvinculados da distribuição de cotas do FMI. 

• Incorporar critérios para medir a situação dos países que vão além do PIB per capita, incorporando outras vulnerabilidades no contexto de crises. Por exemplo, durante a pandemia, três países da América Latina lideraram os índices de mortalidade no mundo devido à falta de unidades de terapia intensiva e deficiências em seus sistemas de saúde. 

• O cumprimento dos compromissos de Ajuda Oficial para o Desenvolvimento é fundamental para projetos que, de outra forma, não seriam financiados, e deve-se ir além do compromisso.

• Sistemas tributários progressivos e medidas para eliminar a evasão e elisão tributária.

Patricia Miranda: Diretora Global de Incidência e Coordenadora da área de Nova Arquitetura Financeira da LATINDADD. Especialista em dívida, financiamento, IFIs e arquitetura financeira, com experiência no setor público e em organizações da sociedade civil nos âmbitos local, nacional, regional e global. Possui um Mestrado MBA com ênfase em finanças.

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