Nas décadas de 1980 e 1990, no contexto de um neoliberalismo global praticamente radical, a América Latina passou pela chamada dupla transição: do autoritarismo para a democracia e das estratégias de desenvolvimento voltadas para dentro, à integração regional e global por meio da privatização e da liberalização comercial e financeira. Os anos 2000 advertiram uma mudança para a esquerda com o retorno do engajamento do Estado e, em alguns países, o retrocesso democrático. Mais recentemente, no contexto de uma tendência ao enfraquecimento das democracias, vemos o surgimento de diferentes formas de “capitalismo autoritário”. Isso é justificado e legitimado por referência à eficiência, particularmente em apoio ao crescimento e desenvolvimento econômico. Mas o “capitalismo autoritário” pode realmente ajudar a América Latina a superar seus principais desafios de desenvolvimento? Neste artigo, adotarei uma abordagem institucional para analisar como esse tipo de autoritarismo abordará os desafios fundamentais do desenvolvimento institucional, incluindo o rentismo, o clientelismo e a desigualdade estrutural. A continuação, tratarei primeiro o significado do conceito, antes de revisar as principais razões para seu recente aumento e seu impacto potencial no desenvolvimento.
Interpretações do capitalismo autoritário
O capitalismo pode ser definido como um sistema econômico em que a maioria dos bens e serviços é produzida com fins lucrativos e a maior parte é de propriedade privada. Pode haver diferentes formas de regulação do mercado, diferentes atores dominantes e a propriedade privada sofrer diferentes interpretações. Certas esferas, como saúde e educação, podem estar parcial ou totalmente protegidas da dinâmica capitalista. No entanto, a maior parte da economia é impulsionada pelos princípios da maximização do lucro.
O termo capitalismo autoritário significa mais do que simplesmente a combinação de um regime autoritário com um modo de produção capitalista. Existem três interpretações dominantes. A primeira enfoca as tendências autoritárias inerentes ao capitalismo. Como o capitalismo se baseia numa posição fundamentalmente desigual entre trabalhadores e proprietários de capital, gera conflitos. Quando as instituições democráticas estão ausentes para resolver tais conflitos, a repressão toma seu lugar, exigindo que instituições estatais autoritárias mantenham privilégios e reprimam a oposição. Isso resulta em capitalismo autoritário. Na América Latina, o exemplo mais claro da história recente é o Chile sob a ditadura de Pinochet. No entanto, existem muitos casos com tendências semelhantes. A partir dos exemplos atuais, a Argentina sob Javier Milei poderia se desenvolver nesse tipo de capitalismo se Milei conseguir fechar os espaços de contestação e enfraquecer suficientemente as instituições do Estado, apesar de ter sido eleito democraticamente.
Uma segunda perspectiva vê o capitalismo autoritário como um sistema no qual a distribuição de oportunidades para a busca do lucro é distribuída de maneira autoritária por meio de instituições estatais. A propriedade privada existe, mas o acesso ao capital e aos contratos depende de instituições autoritárias. O exemplo prototípico é a China, onde empresas nominalmente privadas são rigidamente controladas e integradas a um sistema de competitividade autoritária.
Uma terceira interpretação é que o capitalismo autoritário se encontra onde as empresas privadas produzem com fins lucrativos, mas onde as oportunidades dependem da lealdade a uma elite governamental. Práticas autocráticas são predominantes e o estado de direito é fraco. As empresas privadas são forçadas a submeter-se aos interesses da elite dominante para obter contratos, licenças e recursos, mas podem ter uma grande acumulação de capital se embarcam na jogada. Entre os exemplos atuais está a Nicarágua. A Venezuela também tem fortes características de capitalismo autoritário, apesar do fato de que tanto o regime quanto seus oponentes costumam chamá-lo de “socialista”. Desde 2017, o governo implementou uma série de reformas, incluindo liberalização monetária e comercial e a privatização, para enfrentar a crise econômica abismal e as sanções. Isso aumentou o espaço para empresas privadas. No entanto, as oportunidades que surgem dependem muito da lealdade ao regime. Também podemos confiar que esse seja o caso em El Salvador, onde o regime de Nayib Bukele limita cada vez mais o espaço de acumulação para aqueles que não são leais ao regime, enquanto canaliza oportunidades aos seus aliados. A seguir, referir-me-ei principalmente a esta última interpretação ao discutir o capitalismo autoritário, embora também faça algumas referências ao modelo chinês.
As forças motrizes do capitalismo autoritário
É óbvio que o capitalismo autoritário é impulsionado por muitos fatores que favoreceram o retrocesso democrático, incluindo a ascensão do populismo autoritário que enfraquece as instituições e concentra o poder. Legitima a autoridade com referência à capacidade dos líderes de resolver problemas e não com referência aos princípios democráticos.
No entanto, o fortalecimento das tendências ao capitalismo autoritário não pode ser entendido sem contextualizá-lo em mudanças geopolíticas e estruturais globais. Há quatro aspectos particularmente importantes. Um é a forte tendência de concentração do capital devido, em parte, ao desenvolvimento tecnológico, que aumenta as tendências oligopolistas nos mercados mais lucrativos. Um dos seus efeitos é que um grande número de transações a nível global é coordenado dentro de redes corporativas e não é aberto aos mecanismos de mercado. Isto significa que as decisões são tomadas, cada vez mais, fora da esfera democrática nacional.
Outra mudança é a ascensão da China, que proporciona um exemplo atraente de desenvolvimento capitalista autoritário e uma relação econômica potencial não condicionada por princípios democráticos, como é o caso das relações com os Estados Unidos ou a União Europeia. Isso significa que há tanto um caso para emular o sistema capitalista autoritário quanto espaço político para fazê-lo. Isso não significa que a China esteja tentando impor um sistema semelhante aos seus parceiros econômicos. No entanto, os atores chineses preferem se envolver com as elites governamentais e empresariais e operam com baixos graus de transparência, o que exclui as não-elites (como grupos trabalhistas e da sociedade civil), podendo ocorrer, assim, o fortalecimento das tendências autoritárias.
A mudança relacionada é o protecionismo e o uso de sanções que desencadearam a rivalidade com a China, particularmente pelos Estados Unidos, minando, essencialmente, os princípios liberais sobre os quais o capitalismo internacional foi construído. Isso também pode legitimar o capitalismo autoritário na América Latina, pois demonstra claramente a subordinação dos princípios econômicos às prioridades políticas. Embora tanto a Lei de Redução da Inflação dos EUA quanto a legislação semelhante que permite o protecionismo sejam adotadas por meio de procedimentos democráticos, violam conjuntamente o compromisso no qual a “dupla transição” se baseou. A abertura dos mercados econômicos nacionais e a competividade política na América Latina foram justificadas por meio de um regime de comércio global que, apesar das injustiças, buscava ampla liberalização, reciprocidade e previsibilidade. Quando esse já não é o caso, torna-se cada vez mais difícil argumentar que um sistema econômico e político liberal pode oferecer oportunidades para os países latino-americanos.
Uma quarta tendência é a chamada “mudança verde”: a transição a uma sociedade de baixo carbono. Embora não haja nada inerentemente autoritário na produção de energia renovável ou na extração de novos recursos naturais necessários para a mudança energética, isso pode aprofundar os conflitos sobre a terra e os recursos naturais, potencialmente gerando respostas autoritárias. Nesse sentido, a extração de minerais para infraestrutura energética e baterias, a expansão de barragens e o uso de terras para gerar energia solar e eólica não substituíram a produção de fontes de energia fóssil, contudo se somaram. Além disso, a transição para o baixo carbono é urgente, tanto pelo rápido aquecimento da Terra com consequências cada vez mais tangíveis, quanto pelos acordos vinculantes para mitigar as mudanças climáticas, que exigem ação imediata de todos. Essa urgência também pode justificar uma ação mais autoritária.
As limitações do capitalismo autoritário na solução de problemas de desenvolvimento
Não há consenso sobre quais são os principais problemas de desenvolvimento na América Latina. A resposta a essa pergunta depende de visões políticas, convicções ideológicas e abordagens teóricas. No entanto, há consenso sobre alguns desafios básicos e inter-relacionados: baixa produtividade, alta dependência de produtos básicos, enormes desigualdades socioeconômicas e rápida degradação ambiental. Também é geralmente reconhecido que a abordagem dessas questões requer mudanças nas políticas, bem como a capacidade para implementá-las. As mudanças variam consideravelmente entre os países, mas as políticas fiscais (reformas tributárias, etc.), as políticas sociais (para combater as desigualdades), as políticas para melhorar a educação e a atualização tecnológica e as políticas ambientais estão na lista de prioridades.
Adotar, mas especialmente implementá-las, requer capacidade institucional e um Estado com certo grau de poder relacional. O capitalismo autoritário pode ser uma forma atraente de organizar a economia para gerar tal capacidade, pois promete centralizar o poder e tomar decisões sem as ineficiências envolvidas na inclusão e deliberação democráticas. Um líder autoritário também pode substituir com eficiência as objeções de grupos de interesse estabelecidos, garantindo assim velocidade e consistência na implementação de políticas. China e Cingapura são usados, frequentemente, como referências para uma coordenação política eficiente, não apenas na busca do desenvolvimento, mas também no apoio a uma mudança verde. O autoritarismo também pode garantir um grau de continuidade que forneça a previsibilidade necessária para os investidores privados. Embora as eleições possam ser realizadas sob o capitalismo autoritário, raramente atendem aos critérios clássicos de Przeworski para eleições democráticas: que haja certeza sobre as regras, mas incerteza sobre o resultado.
A América Latina também está repleta de exemplos de empresas privadas que apoiam regimes ou políticos autoritários. Isso pode ser demonstrado diretamente ou por meio de valores do mercado de ações e de câmbio. Por exemplo, as bolsas de valores no Brasil subiram consistentemente com o fortalecimento da candidatura de Bolsonaro, inclusive durante a eleição de 2022, depois que ele liderou o deterioro mais rápido da democracia no país desde o golpe de 1964. Antes das eleições de 28 de julho de 2024, na Venezuela, setores tanto da emergente “elite empresarial bolivariana” como da elite econômica tradicional expressam pouco apoio a uma transição democrática, pois isso implica um grau de incerteza e possível perda de privilégios.
No entanto, há pelo menos três razões pelas quais o capitalismo autoritário não oferecerá soluções de desenvolvimento de longo prazo na América Latina.
A primeira baseia-se em uma conclusão geral da literatura quantitativa sobre a relação entre democracia e crescimento econômico. Embora a literatura anterior questionasse o benefício da democracia sobre o crescimento, dados recentes mais abrangentes mostram que, embora as formas autoritárias de capitalismo tenham gerado períodos de desenvolvimento, em geral, a democracia funciona como uma rede de segurança para evitar os piores resultados econômicos possíveis. Isso pode ser contraintuitivo para quem viveu, por exemplo, as crises da Argentina nas últimas décadas. Geralmente, no entanto, a democracia melhora o desempenho econômico e garante um desempenho mais estável. Além disso, um dos principais argumentos econômicos a favor da autocracia é que os gastos irracionais empreendidos pelos titulares para ganhar eleições podem ser evitados. Porém, como discutido anteriormente, na maioria dos casos atuais de capitalismo autoritário, haverá eleições e os titulares estarão ainda mais focados em ganhá-las do que nas democracias, uma vez que o próprio sistema depende da continuidade governamental. Assim, tanto casos latino-americanos, como a Venezuela, quanto europeus, como a Turquia, sob Recep Tayyip Erdogan, exemplificam que o capitalismo autoritário não garante disciplina fiscal.
A segunda é que os sistemas de capitalismo autoritário na América Latina repousam principalmente em Estados com capacidade institucional relativamente fraca. Embora a repressão garanta um grau de poder para implementar políticas, a principal forma de influenciar os negócios sob o capitalismo autoritário é criar laços de lealdade baseados no acesso privilegiado a oportunidades. Como demonstra uma grande corporação de pesquisas de elite na América Latina, as oportunidades e a influência estão longe de ser distribuídas igualmente entre as democracias. Contudo, enquanto nos sistemas democráticos o poder das empresas privadas pode influenciar e até mudar regimes, nos sistemas de capitalismo autoritário, o regime tem a vantagem e administra os negócios de maneira personalista. Isso significa que são as empresas com os melhores contatos que sobreviverão e prosperarão, não aquelas com as melhores ideias de negócios ou as formas mais eficientes de operar. Embora os sistemas de capitalismo autoritário, como o da Rússia, tenham criado uma classe de líderes empresariais ricos e algumas empresas fortes, a inovação e o crescimento da produtividade são baixos. Na América Latina, é difícil imaginar empresas privadas fazendo investimentos de longo prazo em competitividade e capacidade em um sistema que depende de um único autocrata com uma pequena elite dominante. Em vez disso, veremos um aprofundamento do clientelismo.
Em vez de empresas produtivas, o capitalismo autoritário tende a fortalecer a busca de renda ou o crescimento da riqueza existente, manipulando o ambiente social ou político sem criar nova riqueza. Isso ocorre simplesmente porque, sem freios e contrapesos democráticos, as oportunidades para tal manipulação aumentam. A procura de renda, frequentemente, é associada ao extrativismo na América Latina e, de fato, as principais “economias rentistas” têm sido baseadas na extração de renda dos recursos naturais. Isso pode não apenas reduzir os requisitos de eficiência e inovação, como mostra a história de países como a Venezuela, também é difícil combinar com uma transição verde responsável que exigiria tanto uma redução na extração de combustíveis fósseis quanto o uso responsável dos recursos renováveis.
No entanto, a procura de renda não está ligada apenas aos recursos naturais: ocorre em todos os lugares onde a escassez é criada e a competividade é limitada para acumular riqueza nas mãos de poucos, sem ou com um benefício social negativo. Isso pode acontecer nas democracias, como pode atestar qualquer pessoa que tenha comparado os preços de voos de curta distância ou medicamentos na América Latina. Sob o capitalismo autoritário, no entanto, isso seria sistemático, a menos que um autocrata benevolente, esclarecido e onipotente estivesse no poder.
Finalmente, o desenvolvimento sustentável na América Latina requer a incorporação das vozes de todos os estratos da população. Sem os segmentos mais amplos da economia mais produtiva, a desigualdade permanecerá alta e os períodos de crescimento e redução da desigualdade serão curtos. É verdade que a China alcançou um alto crescimento da produtividade e incorporação de mão de obra sem voz livre para as classes subordinadas. No entanto, a probabilidade de que a América Latina desenvolva sistemas autoritários centralizados semelhantes é mínima. Um caminho mais viável seria proporcionar espaços para a mediação de interesses entre grupos sociais e um desenvolvimento gradual de sistemas de equalização social dentro dos limites das instituições democráticas. O contrário teria mais probabilidade de resultar em conflitos sociais irreconciliáveis e destrutivos do que em um caminho autoritário para o desenvolvimento.
Conclusão
A tentação de apoiar uma forma autoritária de capitalismo pode ser alta entre os setores empresariais desiludidos com as ineficiências e perigos das democracias. Isso é especialmente assim porque os exemplos de sistemas autoritários de alto crescimento, como o da China, atraem a atenção, apesar do recente enfraquecimento de seu desempenho. O aumento da presença de atores econômicos chineses na América Latina, bem como a tendência dos Estados Unidos e da Europa em priorizar objetivos geopolíticos em detrimento do apoio democrático, podem aumentar a atração do capitalismo autoritário. O mesmo serve para os fóruns do Sul Global recém-fortalecidos, que, apesar de abrangerem algumas das maiores democracias do mundo, tendem a minimizar a governança democrática como uma questão nas relações internacionais. Muitos exemplos recentes mostram como os mercados de ações e empresas individuais reagem positivamente ao surgimento de candidatos que prometem caminhos autoritários. O objetivo deste artigo é alertar contra essa tendência. Salvo alguns casos excepcionais, o que sabemos sobre o capitalismo autoritário é que, embora potencialmente produza crescimento de curto prazo, não pode resolver os desafios de desenvolvimento da América Latina.