Tudo começa em casa — e, por extensão, em nossos bairros, comunidades e cidades. Os territórios são a escala concreta onde se entrelaçam cultura, economia e política com a vida cotidiana de bilhões de pessoas. As cidades não são apenas o cenário onde habitamos: são protagonistas da construção de futuros mais justos, inclusivos e sustentáveis. A partir de minha experiência, acredito que é no nível local que as transformações mais estruturantes podem florescer — desde que amparadas por políticas públicas robustas, financiamento adequado e uma visão compartilhada de bem-estar coletivo.
Vivemos em um mundo cada vez mais urbano: até 2050, quase 70% da população mundial viverá em áreas urbanas, de acordo com o Relatório Mundial das Cidades de 2022. Além disso, elas são responsáveis pela geração de 80% do PIB mundial. O crescimento das cidades gera oportunidades — mas também desafios profundos. Hoje, mais de 1 bilhão de pessoas vivem em assentamentos informais, sem acesso adequado à moradia, à água potável, ao saneamento e à mobilidade. E, segundo o Relatório Mundial das Cidades de 2024, comunidades vulneráveis são até três vezes mais propensas a sofrer os impactos mais severos das mudanças do clima, como enchentes, ondas de calor, deslizamentos e insegurança hídrica. Esses dados mostram que o modo como pensamos e construímos nossas cidades terá impacto direto não apenas no futuro das pessoas que nelas vivem, mas também no futuro do planeta como um todo. Cuidar das cidades é, portanto, cuidar da humanidade e de sua sobrevivência comum.
Essa premissa está preconizada em um documento fundamental para guiar as cidades na busca por um futuro urbano melhor: a Nova Agenda Urbana. Adotada em 2016 durante a Conferência Habitat III, ela representa um marco na formulação de um pacto urbano global centrado em direitos humanos, justiça espacial, sustentabilidade ambiental e participação cidadã. Ela parte do reconhecimento de que a urbanização, se bem orientada, pode ser uma poderosa aliada para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e do Acordo de Paris.
O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) é a agência do Sistema ONU dedicada às cidades e ao desenvolvimento urbano sustentável, tendo seu mandato direcionado ao alcance das metas do ODS 11 (“Cidades e Comunidades Sustentáveis”) e da Nova Agenda Urbana. Nos últimos anos, o ONU-Habitat tem atuado como catalisador nesse processo, apoiando governos nacionais e locais na criação de políticas públicas integradas, baseadas em evidências e orientadas para resultados concretos. Trabalhar com o nível local permite implementar soluções concretas e promover mudanças reais, uma vez que a escala da ação encontra o impacto da vida cotidiana. Em um mundo marcado por desigualdades crescentes, mudança do clima e instabilidade econômica, reconhecer o poder transformador do nível local é mais urgente do que nunca.
Nesse contexto, um dos pilares fundamentais para promover cidades mais inclusivas é o acesso à moradia adequada. Esse é um direito humano a partir do qual outros direitos podem ser alcançados, sendo um eixo estruturante da inclusão social, da saúde pública e da segurança climática. Hoje, o déficit habitacional global é alarmante e um dos desafios que devem ser enfrentados de forma prioritária. No Brasil, por exemplo, mais o déficit é de 6,2 milhões de domicílios, o que representa cerca de 8,3% do total de domicílios no país, segundo dados do Censo 2022. Quando falamos desse problema, não abordamos apenas as pessoas que não possuem moradia, mas também coabitação involuntária, moradias precárias e ônus excessivo do custo do aluguel. Garantir moradia adequada é um passo fundamental para promover a inclusão social e melhorar a qualidade de vida de toda a população. Quando dizemos que “tudo começa em casa” também queremos chamar a atenção para o tema das pessoas em situação de rua, que carecem de uma moradia, sendo que esta cumpre um papel fundamental na realização dos demais direitos humanos e do direito à cidade.
O financiamento da habitação precisa ser repensado como uma prioridade dentro da agenda global de desenvolvimento. O acesso a financiamento acessível e de longo prazo é uma condição indispensável para viabilizar soluções habitacionais sustentáveis e inclusivas. Fundos públicos e mecanismos como garantias de crédito, fundos rotativos, parcerias público-privadas, destinação de imóveis ociosos e instrumentos de captura de valor fundiário devem ser ampliados e integrados às estratégias nacionais e locais. A falta de acesso a financiamento adequado não apenas limita a oferta de moradias como perpetua ciclos de pobreza urbana e exclusão.
Além disso, investir em moradia adequada – ou seja, moradias que sejam dignas, acessíveis, sustentáveis e com acesso a serviços básicos – é uma das formas mais eficazes de enfrentar a pobreza urbana e promover justiça climática. Ao mesmo tempo, a construção civil representa cerca de 40% das emissões de carbono relacionadas à energia. Portanto, promover habitação social de baixo carbono e serviços urbanos eficientes também significa agir diretamente sobre as causas e consequências da crise climática.
Durante os preparativos da 4ª Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), o ONU-Habitat defendeu fortemente a centralidade da moradia nos planos nacionais e subnacionais de ação climática, argumentando que o acesso a financiamento acessível é uma condição indispensável para a resiliência urbana. Instrumentos já conhecidos, como a captura de valor fundiário, fundos habitacionais e garantias de crédito para famílias de baixa renda, incluindo para melhorias habitacionais, são algumas das soluções viáveis que precisam de apoio multilateral para ganhar escala.
No entanto, o financiamento é frequentemente citado como um dos principais gargalos para transformar planos urbanos em realidade. Dados da ONU indicam que menos de 10% do financiamento climático global chega diretamente aos governos locais — aqueles mais próximos da implementação das soluções. Essa lacuna revela a necessidade de reformar mecanismos de financiamento internacional, priorizando instrumentos que fortaleçam a governança urbana e tornem os territórios aptos a receber, gerir e aplicar recursos com eficácia.
Para reverter esse cenário, é fundamental combinar financiamento climático e habitacional com estratégias de fortalecimento institucional local. A criação de ambientes normativos favoráveis, o acesso a dados e o desenvolvimento de capacidades técnicas são pré-requisitos para que cidades estejam aptas a receber e implementar recursos internacionais com eficácia e transparência.
Para além desse cenário, vale destacar a importância de compreender os territórios não apenas como espaços físicos, mas como repositórios de identidade, memória e pertencimento. A cultura urbana é um ativo essencial para o desenvolvimento local. Iniciativas que valorizam o patrimônio histórico, promovem o urbanismo social ou criam redes de economia criativa demonstram como é possível integrar cultura e economia de maneira regenerativa.
Em comunidades periféricas e/ou assentamentos informais, a cultura se manifesta como resistência, expressão política e alternativa de geração de renda. Acredito que uma abordagem baseada em território — que reconhece os saberes locais e envolve os moradores em processos de decisão – é mais eficaz para criar cidades humanas, resilientes e produtivas com um senso de pertencimento conjunto.
Essa força cultural e social, no entanto, precisa ser reconhecida, compreendida e potencializada por meio de políticas públicas eficazes. Ferramentas como o Índice de Prosperidade das Cidades, o Mapa Rápido Participativo, o Perfil Socioeconômico, o Urban Monitoring Framework e o Urban Inequality Survey, desenvolvidas ou apoiadas pelo ONU-Habitat, ajudam governos a identificar desigualdades, planejar políticas públicas e monitorar os ODS de forma territorializada.
O fortalecimento de capacidades técnicas e institucionais é outro aspecto central. Em muitas cidades do Sul Global, especialmente intermediárias e pequenas, a escassez de dados confiáveis e a limitação de quadros técnicos dificultam a formulação e execução de políticas urbanas eficazes. O ONU-Habitat tem atuado para apoiar governos na criação de sistemas integrados de dados urbanos, promovendo o uso de ferramentas que cruzam informações territoriais, socioeconômicas e ambientais. A digitalização, aliada ao fortalecimento de competências locais, é essencial para ampliar a eficiência da administração pública e garantir que os recursos investidos produzam resultados concretos e mensuráveis.
Também tem sido reforçada a importância do planejamento multiescalar: é no alinhamento entre as esferas nacional, estadual e municipal que a governança urbana se fortalece e que as soluções deixam de ser pontuais para se tornar estruturantes. Nesse sentido, iniciativas como a CHAMP (Coalition for High Ambition Multilevel Partnerships), lançada nos marcos da COP28, ganham ainda mais relevância ao reconhecer o papel dos municípios na implementação de planos nacionais de adaptação e mitigação.
A cooperação multilateral precisa reconhecer que a escala local é estratégica não apenas para a implementação, mas também para a concepção de políticas inovadoras. A inclusão de partes interessadas locais nos processos de formulação de políticas — por meio de coalizões como a CHAMP — tem demonstrado que a ação climática se torna mais eficaz quando conecta os compromissos nacionais às realidades cotidianas das cidades. Com o fortalecimento de mecanismos como o SURGe (Sustainable Urban Resilience for the Next Generation), torna-se possível não apenas integrar planejamento urbano, mitigação e adaptação climática, mas também fomentar uma governança colaborativa que responda às necessidades do presente com a ambição do futuro.
As cidades têm se mostrado, nos últimos anos, laboratórios vivos de soluções inovadoras. A cooperação Sul-Sul tem permitido o intercâmbio entre países com realidades similares. Redes como Mercocidades, Cidades e Governos Locais Unidos (United Cities and Local Governments, UCLG em inglês), ICLEI (Governos Locais para a Sustentabilidade) e outras plataformas de cidades são essenciais para escalar boas práticas e replicar metodologias testadas em contextos diversos, além das próprias associações nacionais de cidades, como a Associação Brasileira de Municípios (ABM), Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e a Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Algumas cidades, em especial de médio porte, têm se destacado por sua capacidade de inovação e proximidade com a população. Sua escala mais manejável permite maior flexibilidade institucional e abre espaço para abordagens participativas e colaborativas. A articulação de pactos locais, alianças regionais e mecanismos multilaterais — como os promovidos pela Agenda 2030 e pela Nova Agenda Urbana — oferece uma base sólida para essa transformação.
Transformar o mundo exige, antes de tudo, transformar o lugar onde vivemos. As casas, bairros e comunidades são a primeira escala de convivência, solidariedade e ação coletiva. Cuidar das cidades é cuidar das pessoas e do planeta. Mas esse cuidado não começa em grandes conferências nem em tratados multilaterais: começa em casa — no reconhecimento da potência de cada território e na convicção de que, ao fortalecer o local, abrimos caminhos para um futuro global mais justo, inclusivo e sustentável.