Pensamento ibero-americano

Revista da Secretaria-Geral Ibero-Americana


O DESAFIO DO FINANCIAMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE

José Manuel Salazar-Xirinachs

Secretário Executivo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

A Primeira Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento foi realizada em Monterrey em 2002. Naquela ocasião, reuniram-se no México 50 Chefes de Estado ou de Governo e mais de 200 ministras e ministros, assim como representantes de organismos internacionais, do setor empresarial e da sociedade civil. O mundo atravessava então um momento muito diferente do atual, em que apenas se configurava a ascensão das grandes economias emergentes, em particular a China, e em que o desenvolvimento ainda era concebido como um problema de alguns países, ao qual outros ajudavam. Atualmente, essa é uma visão superada. Hoje sabemos que os desafios do desenvolvimento são desafios para todos os países e que a arquitetura de financiamento internacional não se ajusta de forma adequada às necessidades complexas e inter-relacionadas que enfrentam nossas sociedades.

Segundo diversas estimativas, a lacuna de financiamento e investimentos para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em nível mundial situa-se em uma faixa entre 2,5 e 4 trilhões de dólares anuais. Isso exigiria uma mobilização de um total entre 15 e 20 trilhões de dólares até 2030, para cobrir necessidades em áreas como energia, água, saneamento, infraestrutura, alimentação, agricultura, biodiversidade, saúde, educação, entre outras. Somente em ação climática são necessários mais de 2 trilhões de dólares por ano.

A cinco anos de 2030, a CEPAL estima que na América Latina e no Caribe apenas uma em cada cinco (23%) das metas dos ODS está em curso para ser alcançada; 41% apresentam tendência positiva, mas em ritmo muito lento para serem atingidas até 2030; e uma em cada três (36%) apresenta estagnação ou até mesmo retrocessos. Segundo o BID, a lacuna de financiamento na região gira em torno de 650 bilhões de dólares anuais.

Embora este artigo aborde os desafios do financiamento, é importante enfatizar que, embora o financiamento seja um ingrediente essencial para que os países da região saiam das armadilhas e fechem as lacunas estruturais de desenvolvimento que os caracterizam, não é o único: para gerir as transformações necessárias, também são requeridas instituições fortes e governança efetiva. Isso se aplica a todas as áreas básicas do desenvolvimento: políticas sociais, desenvolvimento produtivo, sustentabilidade ambiental, transformação digital, e também às instituições fiscais. No campo fiscal, por exemplo, as capacidades institucionais que requerem fortalecimento incluem a administração tributária para reduzir a evasão fiscal, a gestão de trâmites e a eficiência do gasto, entre outras.

O desafio do financiamento para o desenvolvimento envolve duas grandes frentes de ação: uma frente interna, onde a prioridade é a mobilização de recursos para ampliar o espaço fiscal, juntamente com a melhoria na eficiência do gasto, e uma frente externa, em que a prioridade é a reforma da arquitetura financeira internacional. Ambas as frentes envolvem uma ampla gama de medidas.

A arquitetura financeira internacional ficou defasada em relação às necessidades do sistema econômico mundial, em particular dos países em desenvolvimento. Criada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, essa arquitetura foi desenhada por e para os países industrializados do pós-guerra. Naqueles anos, os fenômenos climáticos não eram prioridade, nem tinham a urgência e prioridade que têm hoje as desigualdades e necessidades sociais, incluindo a desigualdade de gênero; nem mesmo os desafios de financiamento de infraestrutura energética, portuária e de conectividade viária tinham a magnitude e prioridade que têm atualmente. Era um mundo em que ainda não existia a crise climática nem a revolução digital, e era um mundo em que os países em desenvolvimento tinham um total de 1,7 bilhão de habitantes, em comparação com os 6.500 bilhões de hoje, com altas necessidades e expectativas.

Além disso, em comparação com aqueles anos, os mercados privados de capitais cresceram várias ordens de magnitude, o que representa grandes oportunidades, mas também importantes riscos, por serem mercados financeiros mundiais altamente interconectados e com capacidade de movimentar gigantescas quantidades de dinheiro com apenas alguns cliques, afetando muitas classes de ativos.

Tudo isto explica porque a Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4) é uma oportunidade única e crítica para enfrentar os desafios sistêmicos  que o mundo enfrenta.

A Conferência tem como objetivos: i) Avaliar os progressos realizados na implementação do Consenso de Monterrey, da Declaração de Doha e da Agenda de Ação de Adis Abeba; ii) identificar os obstáculos e limitações encontrados na consecução das metas e objetivos acordados no processo de financiamento para o desenvolvimento; e iii) identificar ações e iniciativas para superar as limitações identificadas, e abordar questões novas e emergentes, em particular no contexto da necessidade urgente de acelerar a implementação da Agenda 2030 e a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, bem como apoiar a reforma da arquitetura financeira internacional.

A seguir, comentam-se alguns dos desafios-chave nas frentes interna e externa da mobilização de recursos para o desenvolvimento.

Mobilização de recursos públicos no âmbito nacional

Desde a CEPAL, temos insistido que a América Latina e o Caribe (ALC) se encontram diante de uma crise caracterizada por três armadilhas do desenvolvimento: uma de baixa capacidade para crescer e se transformar; outra de alta desigualdade, baixa mobilidade social e fraca coesão social; e uma terceira de baixas capacidades institucionais e fraca governança.

A armadilha de baixa capacidade para crescer é uma das causas do reduzido espaço fiscal que caracteriza a maioria dos países da região, além de seus altos níveis de endividamento e do custo crescente do serviço da dívida. A combinação entre a baixa capacidade para crescer e o espaço fiscal limitado é uma combinação tóxica para enfrentar os desafios e transformações necessárias.

Além disso, os países enfrentam múltiplos desafios para fortalecer suas receitas fiscais, incluindo a evasão e a elisão fiscais, bases tributárias frágeis e limitadas, assim como estruturas fiscais regressivas. Tudo isso resulta em déficits fiscais elevados e uma pressão constante sobre a dívida pública.

Enquanto a média da arrecadação tributária na região foi de 21,3% do PIB em 2023, a média da OCDE foi de 33,9% do PIB. Por isso, fortalecer os mecanismos de arrecadação fiscal e estabelecer marcos sustentáveis de finanças públicas é essencial. Entre as áreas prioritárias destacam-se o fortalecimento do imposto sobre a renda pessoal, o combate à evasão fiscal para potencializar o rendimento dos impostos e a revisão dos gastos fiscais para mobilizar os recursos necessários para o investimento público.

Uma das questões mais urgentes é a necessidade de fortalecer os impostos diretos, em particular o imposto sobre a renda pessoal. É com relação a esse imposto que se encontra a principal lacuna tributária entre os países da região e a OCDE: em 2023, o imposto sobre a renda pessoal representava 2,0% do PIB na região e 8,2% na OCDE. Para fechar essa lacuna, é necessário ajustar as alíquotas marginais, revisar as bases tributáveis e melhorar o tratamento dos diferentes tipos de renda, juntamente com a ampliação dos impostos sobre a riqueza e a propriedade. Essas medidas são essenciais não apenas para aumentar a arrecadação, mas também para garantir uma distribuição mais justa da riqueza. Além disso, os países devem priorizar o combate à evasão e à elisão fiscais, que geram importantes perdas de receita e afetam a equidade do sistema tributário.

A expansão do espaço fiscal também pode ser alcançada por meio da melhoria da eficiência do gasto público. Uma melhor gestão financeira pública fortalecerá a confiança dos investidores, o que resultará em maior investimento privado em infraestrutura, educação e saúde.

Com poucas exceções, os países da América Latina e do Caribe aprenderam a lição e fizeram a lição de casa da estabilidade macroeconômica e da disciplina fiscal. Antes da pandemia, a região registrava dados de dívida relativamente saudáveis, em um ambiente internacional com baixas taxas de juros. Isso mudou drasticamente. Atualmente, os países da ALC se encontram em uma situação em que a realidade fiscal atenta cada vez mais contra as legítimas aspirações de desenvolvimento e se torna muito difícil ter espaço fiscal para realizar os investimentos em saúde, educação, infraestrutura e transformação produtiva que são indispensáveis para dinamizar o crescimento e os mercados de trabalho, reduzir a pobreza e a informalidade, assim como a desigualdade.

Não se trata de um argumento ideológico sobre ortodoxia ou heterodoxia macroeconômica, mas sim de um argumento de pragmatismo elementar e bom senso. Mais do que distress da dívida, o que os países enfrentam hoje em dia é um distress do desenvolvimento. E por isso a possibilidade de obter resultados na reunião sobre Financiamento para o Desenvolvimento em Sevilha é tão importante.

Reforma da arquitetura financeira internacional

Na América Latina e no Caribe, o aumento no serviço da dívida e nos custos de financiamento levou a uma significativa realocação de recursos públicos, desviando fundos de investimento em áreas-chave para o desenvolvimento para o pagamento de juros da dívida. O investimento público tornou-se a principal variável de ajuste fiscal, já que os países costumam priorizar a sustentabilidade da dívida em detrimento do alcance dos objetivos de desenvolvimento.

Para 23 países da região, entre 2012 e 2023, os pagamentos de juros do governo central como porcentagem do gasto em educação aumentaram de 45% para 70%, em saúde de 61% para 86% e em proteção social de 52% para 57%. Em alguns países, esses percentuais igualam ou superam os 100%. O pagamento de juros do governo central médio para a região é de 3%, mas seis países pagaram 4 ou mais pontos do PIB em juros em 2024, e sete pagaram entre 3 e 4 pontos.

Para reduzir os riscos associados à dívida soberana, é necessário melhorar sua transparência por meio de um registro público dos contratos de dívida soberana, e desenvolver melhores métodos para avaliar sua sustentabilidade. Isso é crucial para diferenciar entre crises de liquidez e crises de solvência, permitindo que os países se concentrem em investimentos de longo prazo em adaptação climática e desenvolvimento sustentável sem arriscar sua estabilidade fiscal.

Além disso, é necessário desenvolver marcos robustos de gestão da dívida para prevenir ineficiências e vazamentos no uso do endividamento. Também é importante estabelecer marcos de governança transparentes que garantam que as decisões de endividamento sejam tomadas de forma responsável e com a supervisão adequada.

Os marcos internacionais atuais para a reestruturação da dívida soberana têm se mostrado insuficientes. A maioria dos países de renda média, incluindo os da América Latina e do Caribe, fica excluída do Quadro Comum para o Tratamento da Dívida do G20, deixando-os sem vias adequadas para o alívio da dívida.

A ampliação do endividamento em moeda local também é fundamental para reduzir a vulnerabilidade frente às flutuações da taxa de câmbio. Isso pode ser alcançado por meio do desenvolvimento de mercados de capitais locais e da implementação de programas de garantias e melhoria de crédito, nos quais a banca de desenvolvimento deve desempenhar um papel-chave. Adicionalmente, os países devem aproveitar o crescente interesse dos investidores em instrumentos de financiamento sustentável.

Em nível global, a curto prazo, os esforços para enfrentar a crise da dívida devem se concentrar em expandir a participação no Quadro Comum para o Tratamento da Dívida do G20, incluindo os países de renda média. A médio prazo, é necessário um mecanismo multilateral de reestruturação da dívida que equilibre os interesses dos devedores soberanos e dos credores privados. Esse mecanismo atuaria como um mediador neutro nas negociações de dívida, garantindo que os tratamentos da dívida sigam princípios comuns e protejam os interesses dos países vulneráveis.

Além dos desafios da dívida e de sua sustentabilidade, é preciso reconhecer que a atual arquitetura financeira global não reflete adequadamente as realidades da economia mundial interconectada e complexa, na qual os países em desenvolvimento desempenham um papel muito mais importante no panorama econômico.

Para refletir a dinâmica mundial em transformação, é essencial reformar as estruturas de governança das instituições financeiras internacionais para aumentar a representação dos países em desenvolvimento. Uma proposta-chave é a reforma das cotas do Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa reforma permitirá que as políticas que afetam a economia mundial possam ser mais bem adaptadas às necessidades e prioridades dos países em desenvolvimento. Também conduziria, em parte, a um melhor acesso aos recursos para o financiamento do desenvolvimento, já que as cotas do FMI estão vinculadas à disponibilidade de financiamento para seus membros.

Diante das atuais vulnerabilidades da economia mundial, também é necessário reforçar significativamente a rede de segurança financeira internacional. A Banca Multilateral de Desenvolvimento e os credores bilaterais deveriam desempenhar um papel mais ativo na provisão de financiamento anticíclico durante as crises. As propostas para aumentar a capacidade de empréstimo da Banca de Desenvolvimento incluem ampliações de capital, melhor uso do capital existente e critérios de empréstimo mais flexíveis. Os bancos multilaterais de desenvolvimento também devem continuar explorando de forma mais ativa mecanismos de financiamento alternativos, como os bônus temáticos e a colocação de instrumentos de capital híbrido.

Uma forma promissora de aumentar a liquidez mundial é que os países desenvolvidos reciclem os Direitos Especiais de Saque (DES ou Special Drawing Rights) para os países em desenvolvimento. A alocação de DES de 2021 representou um alívio necessário para os países em desenvolvimento, mas ainda há muito potencial a ser explorado na otimização de seu uso. As propostas de emissão automática de DES durante crises, com base em condições preestabelecidas, garantiriam uma resposta mais rápida a futuras emergências financeiras e evitariam os atrasos causados pela paralisia geopolítica. Adicionalmente, é necessário fortalecer a cooperação Sul-Sul, triangular e horizontal. Essa abordagem multidimensional é essencial para construir sistemas financeiros resilientes e sustentáveis em todo o mundo em desenvolvimento, sobretudo considerando os inúmeros desafios financeiros, de governança e de desenvolvimento de capacidades que esses países enfrentam.

O sistema financeiro internacional também deve proporcionar mais financiamento em condições favoráveis aos países em desenvolvimento, o que não deve se basear unicamente nos níveis de renda. O desenvolvimento é um processo multidimensional, e são necessárias novas métricas além do PIB per capita. Essa mudança garantiria que os países mantenham o acesso ao financiamento em condições favoráveis por mais tempo, apoiando seus esforços de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que lhes permitiria gerir as vulnerabilidades econômicas.

O atual sistema mundial de classificação de crédito, dominado por agências privadas, muitas vezes não leva em conta os riscos de longo prazo nem considerações sobre sustentabilidade. Por isso, é necessário revisar as metodologias de classificação de crédito para que incorporem uma gama mais ampla de critérios. Além disso, os contratos de dívida deveriam incluir cláusulas contingentes para proteger os países da insolvência provocada por choques externos, como catástrofes naturais.

A necessidade de reformas integrais na arquitetura financeira internacional é mais urgente do que nunca. Com muitos países em desenvolvimento enfrentando dificuldades relacionadas à dívida, é necessário agir imediatamente para modernizar a governança mundial, melhorar a gestão da dívida e estabelecer mecanismos de resolução mais equitativos.

Conclusões

O contexto atual exige uma ação decidida e coordenada para fechar as lacunas de financiamento e avançar rumo ao cumprimento dos ODS na América Latina e no Caribe.

A mobilização de recursos internos é indispensável para fortalecer a capacidade fiscal e financiar investimentos transformadores. Em paralelo, a reforma da arquitetura financeira internacional é urgente para dotar os países da região de mecanismos mais equitativos e eficazes de acesso a financiamento, gestão da dívida e representação na tomada de decisões globais.

A Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento representa uma oportunidade histórica para impulsionar essas mudanças e estabelecer as bases de uma nova governança financeira global, alinhada com as prioridades e realidades dos países em desenvolvimento.

José Manuel Salazar-Xirinachs: Secretário Executivo da CEPAL. Ocupou cargos de destaque na OIT, onde foi Diretor Regional para a América Latina e o Caribe e Subdiretor-Geral de Políticas. Anteriormente, foi Ministro do Comércio Exterior da Costa Rica e atuou como professor em universidades como Cambridge, Georgetown e Universidade da Costa Rica.

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