Pensamento ibero-americano

Revista da Secretaria-Geral Ibero-Americana


IBERO-AMÉRICA EM ENFOQUE URBANO: COMO FINANCIAR OS DESAFIOS DAS CIDADES

Luciana Binaghi Getar

Diretora Geral da União de Cidades Capitais Ibero-americanas (UCCI)

Os governos locais — por meio de prefeituras, municipalidades, prefeituras ou chefias de governo — desempenham um papel fundamental na prestação de serviços essenciais à cidadania. Desde a educação e o atendimento à saúde até o desenvolvimento de infraestruturas; desde o planejamento urbano e as políticas de mobilidade até a segurança cidadã ou a gestão da administração, para citar apenas alguns exemplos.

Além das tarefas atribuídas em função do mandato legal — que varia de país para país — os governos locais muitas vezes se veem forçados a enfrentar desafios impostos pela contingência, mesmo que não contem com recursos financeiros suficientes nem com a obrigação legal.

Atualmente, a atividade desses governos locais também é impactada por três dinâmicas que tornam sua atuação ainda mais complexa e exercem pressão sobre as finanças locais: a mudança climática, o envelhecimento da população e a transformação digital.

No que diz respeito aos efeitos associados ao aumento das temperaturas e à mudança climática, nossas prefeituras desempenham um papel fundamental em áreas como transporte, habitação e regulação do uso do solo — áreas que têm um impacto direto se quisermos alcançar os objetivos climáticos nacionais e internacionais. Para cumprir com esses objetivos, é fundamental investir na melhoria, mitigação e adaptação das infraestruturas, sendo que os governos locais têm participação significativa no desenho e na execução de grandes obras. Para financiar esses esforços, é imperativo mobilizar receitas em nível local e explorar novas abordagens inovadoras, por exemplo, por meio da cooperação. De fato, no campo ambiental, a cooperação intergovernamental é essencial para alinhar os objetivos climáticos em todos os níveis de governo, inclusive o nível dos governos subnacionais e locais.

Em relação à segunda dinâmica — associada ao envelhecimento da população — a baixa taxa de natalidade e o aumento da expectativa de vida na região têm uma incidência direta na demanda por serviços nas cidades. Ainda que em alguns setores — como a educação infantil ou primária — a necessidade possa diminuir, em outros, como a saúde e especialmente o cuidado com as pessoas idosas, a pressão aumenta significativamente. Os governos locais devem então se preparar para essas demandas em constante evolução, contando com recursos suficientes para financiar infraestrutura adaptada às pessoas idosas e desenvolvendo modelos inovadores de atenção inclusiva.

Por fim, a terceira dinâmica — que, se bem gerida, pode representar um tremendo ativo — está relacionada com a transformação digital. Porque, por um lado, pode significar uma melhoria na eficiência da gestão pública local, facilitar o acesso a serviços, promover a inovação e melhorar a qualidade de vida dos habitantes da cidade. No entanto, por outro lado, também implica desafios significativos, especialmente em termos de recursos e capacidades.

Um dos principais obstáculos dessa dinâmica é justamente o investimento necessário para implementar tecnologias digitais e permitir o desenvolvimento de infraestrutura de conectividade, já que muitas cidades enfrentam limitações orçamentárias que podem dificultar a adoção de soluções digitais avançadas que cheguem a toda a população. Para enfrentar esses desafios, as cidades devem planejar cuidadosamente seus investimentos e estratégias de transformação digital, priorizando projetos que sejam sustentáveis e que possam gerar um impacto positivo na comunidade.

O financiamento: uma preocupação compartilhada

Como podemos ver, esses desafios e dinâmicas estão pressionando os cofres fiscais dos governos locais e mudando o paradigma financeiro das cidades, exigindo respostas inovadoras, coordenação multinível e cooperação. Trata-se de uma preocupação recorrente em qualquer fórum de prefeitos e prefeitas, porque a vontade política não basta para enfrentar os desafios enfrentados pelas administrações locais: são necessários recursos econômicos e acesso a um financiamento mais amplo e de melhor qualidade para realizar as grandes transformações que os ambientes urbanos exigem.

Nesse contexto, durante o I Encontro de Cidades Ibero-americanas — evento que realizamos em colaboração com a Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB) no marco da XXIX Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo — 21 governos locais da região se reuniram para discutir os desafios, dificuldades e oportunidades que enfrentam as principais cidades ibero-americanas. Nesse cenário, a temática do financiamento e do acesso a recursos para o desenvolvimento dos grandes projetos de transformação urbana foi o principal eixo de discussão.

Ali pudemos ouvir, na voz das principais lideranças da nossa organização, frases como “os prefeitos sempre temos que responder, mesmo sem termos a resposta nem os recursos” ou “não se pode pensar no futuro se não financiarmos as cidades de forma diferente”. Sobrecarregadas com a gestão do dia a dia, as autoridades locais precisam, ao mesmo tempo, estar atentas ao planejamento financeiro, à gestão fiscal e à captação de recursos externos. Porque muitas vezes associamos a ação dos governos locais à execução e ao trabalho mais operacional, mas no pano de fundo existe uma tarefa de arquitetura financeira que ultrapassa qualquer governo local da região.

A cooperação entre cidades: uma necessidade

Mas como a cooperação entre cidades pode melhorar o acesso ao financiamento? A primeira coisa que se deve valorizar é que a cooperação para o desenvolvimento sempre foi um mecanismo dos Estados para enfrentar os desafios do progresso. As cidades são um ator relativamente novo no cenário internacional e, portanto, também são um ator recente em termos de cooperação.

No entanto, isso não significa que o potencial desses mecanismos não seja gigantesco, já que a cooperação entre cidades ibero-americanas pode ser uma ferramenta muito poderosa para melhorar o acesso ao financiamento. Quando as cidades trabalham juntas, compartilham experiências, conhecimentos e boas práticas, fortalecem suas capacidades para desenvolver projetos sólidos e atrativos para os financiadores. Além disso, a colaboração pode facilitar a criação de alianças estratégicas e a participação em fundos internacionais ou programas de financiamento específicos para o desenvolvimento urbano e sustentável.

Por exemplo, as cidades podem se unir para apresentar projetos conjuntos, o que aumenta seu peso e visibilidade diante de organismos multilaterais, bancos de desenvolvimento ou fundos de investimento. Também podem trocar informações sobre oportunidades de financiamento, aprender com as experiências de outras cidades na gestão de recursos e fortalecer suas capacidades técnicas e administrativas para gerir esses fundos de forma eficiente. Em resumo, a cooperação entre cidades gera uma rede de apoio que pode facilitar o acesso a recursos financeiros, promovendo assim um desenvolvimento urbano mais sustentável e equitativo.

Cientes dessas vantagens, no I Encontro de Cidades Ibero-americanas pudemos colocar à mesa, junto com os prefeitos e prefeitas, representantes dos bancos de desenvolvimento e da banca tradicional — entidades-chave se quisermos promover uma conversa e uma cooperação multissetorial para enfrentar as lacunas de financiamento. Uma das questões destacadas por representantes dessas entidades foi justamente a revalorização das cidades e dos ambientes urbanos como sujeitos de acesso ao crédito e ao financiamento. Como bem afirmou um representante de um dos principais bancos da região: “em muitas cidades, as classificações de risco locais são melhores do que aquelas dos governos nacionais”, sendo, portanto, mais atrativo e menos arriscado para a banca financiar essas entidades.

Essa revalorização e esse maior peso específico das cidades enquanto sujeitos de financiamento também pode ser observado no último relatório publicado pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe – CAF. Em seu Relatório de Economia e Desenvolvimento, centrou o olhar sobre o papel dos governos locais e regionais no desenvolvimento da América Latina e do Caribe, enfatizando ali a necessidade de descentralizar o investimento público e de aumentar a disponibilidade de recursos no nível dos governos locais.

Como bem se reflete nesse relatório, apesar de que hoje em dia as fontes de financiamento são mais variadas — cada vez mais governos locais recorrem à emissão de dívida ou a mecanismos externos em instituições bancárias e de crédito —, continua existindo uma lacuna de financiamento marcada por transferências insuficientes do governo central, uma arrecadação tributária deficiente e outras limitações que afetam suas capacidades institucionais. E é justamente aqui que um modelo de cooperação entre cidades ibero-americanas, impulsionado por organizações como a União de Cidades Capitais Ibero-americanas (UCCI), pode marcar uma diferença significativa.

Porque a UCCI exerce um papel fundamental na promoção do diálogo e da cooperação entre as grandes cidades e capitais ibero-americanas. Surgiu há mais de 40 anos como um organismo com vocação para a cooperação e, até hoje, construir pontes entre cidades de ambos os lados do Atlântico continua no centro da nossa ação diária.

Ao contrário de outros organismos, nossa organização não concede linhas de crédito, não oferece empréstimos nem disponibiliza fontes de financiamento; mas sim conta com um ativo fundamental para o desenvolvimento e o financiamento de nossas cidades: a capacidade de facilitar o intercâmbio de conhecimentos, promover a inovação e fortalecer as redes de colaboração entre autoridades e atores urbanos. Esse ativo permite que as cidades aprendam umas com as outras, implementem soluções adaptadas aos seus contextos específicos e potencializem seu desenvolvimento sustentável, social e econômico.

Luciana Binaghi Getar: Diretora-geral da União de Cidades Capitais Ibero-americanas (UCCI) e primeira latino-americana a ocupar este cargo. Possui mais de 20 anos de experiência em cooperação internacional, governança urbana e planejamento público. Trabalhou na Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB) e no Gabinete da Presidência do Governo da Espanha, além de ter liderado projetos inovadores em sustentabilidade, alianças estratégicas e desenvolvimento urbano.

* As opiniões expressas nos artigos e vídeos da revista Pensamento Ibero-Americano são de responsabilidade exclusiva dos seus autores e não refletem necessariamente o ponto de vista da Secretaria-Geral Ibero-Americana.

A publicação da revista Pensamento Ibero-Americano pela SEGIB responde a sua vocação de serviço à comunidade ibero-americana, contribuindo para a difusão dos principais debates intelectuais da atualidade. A revista está, portanto, aberta a opiniões diversas, sem exclusões, que, por sua vez, são o resultado da pluralidade e da diversidade de visões no âmbito ibero-americano.

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