Dentro de algumas semanas, o mundo do desenvolvimento se reunirá em Sevilha para participar da Quarta Conferência sobre Financiamento ao Desenvolvimento (FfD4). É de conhecimento geral o quão difícil é falar sobre financiamento ao desenvolvimento sem dispor de informações apropriadas. Precisamos de dados completos e de qualidade sobre o financiamento disponível e as lacunas existentes, assim como para entender melhor suas prioridades e resultados.
O padrão estatístico do Apoio Oficial Total para o Desenvolvimento Sustentável (TOSSD, por suas siglas em inglês) busca tornar isso possível. O TOSSD coleta dados para refletir o panorama total dos recursos, financeiros e em espécie, que os países em desenvolvimento recebem; bem como o apoio que os países oferecem para a solução de desafios globais, em linha com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Este artigo trata do papel do TOSSD na medição do financiamento ao desenvolvimento. Para isso, é necessário falar sobre o quê, como e por que do TOSSD, assim como dos dados coletados. Também apresentamos como a Ibero-América tem se envolvido ativamente com o TOSSD – tanto nas discussões sobre sua definição quanto na coleta de dados. Por fim, falamos sobre o que está por vir para o futuro do TOSSD e das discussões que ocorrerão no Fórum Internacional de TOSSD sobre a medição do financiamento ao desenvolvimento.
Por que o TOSSD?
Os mecanismos de financiamento, assim como a quantidade e variedade de atores, aumentaram nos últimos anos. Passamos de um mundo em que as diferenças entre provedores e receptores de financiamento eram muito marcadas para um em que essas categorias não são suficientes para representar as relações de cooperação entre países e organizações. Tudo isso faz com que a arquitetura do financiamento ao desenvolvimento seja mais complexa.
Consequentemente, as decisões sobre como medir esse financiamento devem envolver o maior número possível (senão todos) desses atores. Para que uma medida de financiamento ao desenvolvimento seja tanto tecnicamente apropriada quanto politicamente legítima, países de diferentes regiões, com diferentes níveis de renda, em diferentes estágios de desenvolvimento e com diferentes visões de desenvolvimento, devem sentar-se juntos e decidir como esse financiamento deve ser medido. Tudo isso deu origem à concepção, criação e implementação do TOSSD.
Ideação e criação do TOSSD
O TOSSD foi concebido como um padrão estatístico que refletisse a natureza dinâmica do panorama financeiro internacional para o desenvolvimento, bem como todos os seus diversos atores e mecanismos. Isso faz do TOSSD uma ferramenta útil e valiosa para o planejamento e o acompanhamento das atividades de desenvolvimento sustentável em nível nacional e internacional. O TOSSD integra o apoio concessional e não concessional, assim como diferentes modalidades de cooperação (Ajuda Oficial ao Desenvolvimento [AOD], Cooperação Sul-Sul [CSS], Cooperação Triangular/Trilateral), finanças islâmicas, mobilização de recursos privados por meio de intervenções oficiais, entre outros.
O desenvolvimento do TOSSD já ocorre há quase uma década e teve início no âmbito do Grupo de Trabalho Internacional sobre TOSSD. O Grupo de Trabalho foi criado em 2017, composto por especialistas tanto de agências de cooperação quanto de Escritórios Nacionais de Estatística, oriundos de doadores tradicionais, países em desenvolvimento, organizações internacionais e sociedade civil. Seu mandato era criar a primeira versão da metodologia do TOSSD e estabelecer as bases para o processo de relatório e publicação dos dados TOSSD.
Em resumo, o TOSSD é três coisas:
- O TOSSD é um marco global, onde todos os provedores oficiais de apoio ao desenvolvimento sustentável, sejam países ou organizações multilaterais, têm espaço para reportar esse apoio.
- O TOSSD é uma ferramenta de transparência, que permite melhorar a efetividade desse apoio ao desenvolvimento, promover a coordenação entre provedores, bem como fomentar o diálogo entre atores-chave.
- O TOSSD é um padrão estatístico, com uma metodologia objetiva, que permite a coleta de informações sobre a grande variedade de fluxos de financiamento ao desenvolvimento com a mais alta qualidade.
O TOSSD é composto por dois pilares, que consideram o amplo leque de instrumentos e fontes de financiamento, ao mesmo tempo que permitem uma melhor delimitação e classificação desse apoio. O pilar 1 apresenta os fluxos transfronteiriços recebidos pelos países em desenvolvimento, enquanto o pilar 2 apresenta o apoio prestado para a manutenção de bens públicos internacionais, bem como a atenção a desafios de índole global.
Essa estrutura de pilares permite que os países, por meio do pilar 1, tenham uma visão mais clara e precisa do apoio oficial externo que de fato recebem. Em poucas palavras, a existência do pilar 2 “protege” os dados sobre o financiamento destinado aos países em desenvolvimento. Por fim, os dados da mobilização de recursos privados por meio de intervenções oficiais são apresentados separadamente, para evitar que esses recursos “inflem” o total de apoio oficial dado aos países em desenvolvimento.
Implementação do TOSSD
A inclusividade que sempre caracterizou o Grupo de Trabalho é a pedra angular do Fórum Internacional de TOSSD, sua atual estrutura de governança. O Fórum iniciou suas operações em janeiro de 2024 e possui três funções principais: 1) manter e aprimorar o padrão TOSSD; 2) coletar e analisar os dados do TOSSD, melhorando continuamente sua qualidade; e 3) promover o TOSSD e o uso desses dados. O Fórum Internacional sobre TOSSD é uma estrutura independente, cuja Secretaria está sediada na OCDE.
O Fórum conta com duas instâncias principais: a Assembleia Geral e o Comitê Diretivo, acompanhadas pela Secretaria. A Assembleia Geral reúne todos os membros do Fórum, seus observadores e também todos os provedores de dados do TOSSD que possam oferecer ideias para moldar o TOSSD. A Assembleia Geral também permite a troca de conhecimentos e aprendizados sobre transparência no apoio ao desenvolvimento. O Comitê Diretivo é responsável por assegurar a aplicação da visão, da missão e das prioridades estratégicas do Fórum, bem como por aprovar as melhorias na metodologia do TOSSD. A Secretaria lidera o cotidiano do TOSSD, coletando e publicando os dados, propondo melhorias contínuas na metodologia e nos processos de coleta, além de promover o TOSSD.
Ibero-América e o TOSSD
Os países ibero-americanos desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento do TOSSD. Doze países ibero-americanos reportam ao TOSSD, e sete deles são membros do Fórum Internacional de TOSSD, conforme mostra a tabela a seguir. A participação ibero-americana no TOSSD vem desde o início: Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica e México fizeram parte do Grupo de Trabalho Internacional e foram realizados projetos-piloto no Chile e na Costa Rica para testar a metodologia do TOSSD.
País | Membro do Foro Internacional de TOSSD | Ano de início de relatório ao TOSSD |
---|---|---|
Argentina | Não | 2024 |
Brasil | Sim | 2021 |
Chile | Sim | 2020 |
Costa Rica | Sim | 2020 |
Equador | Não | 2023 |
Espanha | Sim | 2020 |
Guatemala | Sim | 2024 |
México | Sim | 2022 |
Peru | Sim | 2022 |
Portugal | Não | 2020 |
República Dominicana | Não | 2023 |
Uruguai | Não | 2023 |
A Ibero-América contribuiu para o desenvolvimento do TOSSD em três áreas principais:
- O uso de critérios multidimensionais, além do RNB per capita, para definir a lista de receptores em TOSSD. Os países ibero-americanos defenderam durante anos o uso de critérios além do PIB per capita nas medições internacionais sobre financiamento ao desenvolvimento. Em 2024, o Fórum Internacional do TOSSD acordou o uso do Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado pela Desigualdade (IDHD), o Índice Global de Adaptação às Mudanças Climáticas da Universidade de Notre Dame e o Índice de Vulnerabilidade Multidimensional das Nações Unidas (MVI) para definir a lista de países beneficiários do TOSSD. Com essa decisão, o TOSSD pode captar dados de financiamento ao desenvolvimento recebidos por países que já não são elegíveis para AOD, como Bahamas, Barbados, Chile, São Cristóvão e Névis, Trinidad e Tobago e Uruguai. Os países ibero-americanos, com destaque para a liderança do México, foram fundamentais para a aprovação dessa decisão.
- A criação da metodologia para medição da Cooperação Sul-Sul (CSS) nas Nações Unidas. Brasil e México, inicialmente essenciais para a inclusão da Cooperação Sul-Sul como componente do TOSSD, foram cruciais para a definição, pelas Nações Unidas, da metodologia inicial de medição da CSS. O TOSSD, seguindo os padrões da ONU tanto quanto possível, adotou essa metodologia para coleta de dados da CSS e se compromete a incorporar quaisquer futuras alterações.
- O estabelecimento e o piloto do Mecanismo de Revisão de Dados do TOSSD. Em 2022, acordou-se a criação de um mecanismo de revisão de dados, em resposta à demanda dos países em desenvolvimento por ter voz sobre os dados reportados internacionalmente sobre o financiamento que recebem. Esse mecanismo foi proposto pela Colômbia, antiga integrante do Grupo de Trabalho Internacional sobre o TOSSD. Posteriormente, a Colômbia participou, junto com Camarões e Bangladesh, do piloto realizado pela Secretaria sobre a comparabilidade dos dados do TOSSD com os registros nacionais desses países, demonstrando que o TOSSD pode ajudar a preencher lacunas de informação sobre o apoio externo recebido pelos países em desenvolvimento. A República Dominicana também participou ativamente no piloto do mecanismo, trazendo aprendizados que servirão para sua implementação a partir de 2025.
A Secretaria-Geral Ibero-Americana (SEGIB) é observadora do Fórum Internacional do TOSSD desde 2024. Conforme destacado no 15º Relatório da Cooperação Sul-Sul e Triangular na Ibero-América, há grande complementaridade entre os sistemas de informação da SEGIB e do TOSSD, o que representa uma oportunidade valiosa de colaboração para facilitar a entrega de dados. Além disso, “a experiência da SEGIB constitui um recurso valioso que pode ser compartilhado com outras regiões interessadas em aprimorar seus processos de relatório e elaboração de estatísticas”.
Outras organizações com ampla participação ibero-americana também participam do TOSSD. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização dos Estados Americanos (Secretaria Executiva para o Desenvolvimento Integral) são membros do Fórum Internacional de TOSSD e reportam anualmente ao padrão. Da mesma forma, o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e o Banco Centro-Americano de Integração Econômica (BCIE) também reportam anualmente ao TOSSD e, portanto, participam da Assembleia Geral do Fórum.
O futuro do TOSSD
A FfD4 representa um momento único para pactuar e iniciar ações transformadoras que, com os parceiros certos, ajudem a mobilizar os recursos necessários para o desenvolvimento sustentável, sem deixar ninguém para trás. Para isso, dispor de dados de qualidade sobre o financiamento ao desenvolvimento não é algo acessório — é essencial.
Os dados do TOSSD oferecem uma visão mais ampla, porém mais refinada, sobre o financiamento ao desenvolvimento recebido pelos países em desenvolvimento. Do mesmo modo, o TOSSD, ao utilizar a metodologia definida pela ONU para medir a CSS, consegue captar uma grande variedade de formas de cooperação Sul-Sul e apresentá-las de maneira aberta para qualquer usuário dos dados TOSSD.
As próximas reuniões do Fórum (21 a 23 de outubro de 2025), em Madri, sediadas pelo Ministério de Assuntos Exteriores e Cooperação da Espanha, serão cruciais para definir o futuro do TOSSD e, de maneira mais ampla, para a medição do financiamento ao desenvolvimento. Há várias razões para isso:
- Essas reuniões são uma oportunidade ideal para conversas abertas, inclusivas e transparentes sobre como o TOSSD pode responder melhor aos resultados da Conferência de Sevilha.
- Os Copresidentes do Fórum apresentarão à Assembleia Geral sua estratégia e visão para o futuro do TOSSD até 2030.
- As reuniões em Madri serão um espaço para debater a inclusão do apoio filantrópico no TOSSD, bem como os Direitos Especiais de Saque redirecionados aos países em desenvolvimento.
- Também serão discutidas melhorias na metodologia de relatório do apoio à proteção da biodiversidade e em relação ao ODS 16 (paz, justiça e instituições eficazes).
Todos os países e organizações que reportam ao TOSSD podem participar das discussões por meio da Assembleia Geral do Fórum, que ocorre anualmente. O Comitê Diretivo se reúne pelo menos duas vezes por ano para decidir sobre questões-chave relacionadas à continuidade do TOSSD. Todos os países e organizações estão convidados a se tornarem membros ou observadores do Fórum Internacional de TOSSD.
Como mencionava Xiaojun Grace Wang, do Escritório das Nações Unidas para Cooperação Sul-Sul, no contexto do Comitê de Alto Nível sobre Cooperação Sul-Sul, “como a água, os dados precisam ser (…) de boa qualidade para serem consumidos e bem governados para que possam ser considerados um verdadeiro bem público”. A participação dos países e organizações que integram a comunidade do TOSSD — com uma expressiva presença ibero-americana — é essencial para garantir que os dados do TOSSD sejam úteis e de alta qualidade para informar o financiamento ao desenvolvimento, por meio de uma governança inclusiva e ativa.