Pensamento ibero-americano

Revista da Secretaria-Geral Ibero-Americana


Financiando o futuro: uma proposta de títulos de desenvolvimento digital para a Ibero-América

Manuel Balmaseda

Membro fundador da Argia

Ángel Melguizo

Membro fundador da Argia

Víctor Muñoz

Membro fundador da Argia

A arquitetura financeira internacional surgida da conferência monetária e financeira das Nações Unidas realizada em Bretton Woods (Estados Unidos) completou 80 anos, e é hora de reformas. Embora essa institucionalidade – com a criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial e seus instrumentos financeiros globais – tenha tido uma contribuição notável para o avanço da integração econômica global e do desenvolvimento econômico, o consenso é que hoje está ancorada demais no passado. 

O mundo está imerso em uma transformação tecnológica, econômica e política sem precedentes, o que exige uma nova arquitetura financeira internacional. Essas dinâmicas estão reformulando de maneira cada vez mais acelerada a forma como as sociedades, os governos e as empresas operam. O mundo em 2025 será um mundo radicalmente diferente ao da pós-guerra nos anos 40, com um aumento expressivo do poder econômico e do soft power das economias emergentes (‘Sul Global’), o retorno da Geopolítica em maiúsculas e as revoluções tecnológicas, com a emergência de novos atores geopolíticos associados a essas mudanças.

De fato, o mundo em 2025 será radicalmente diferente não apenas ao dos anos 40, mas também ao do início do século XXI, quando foi realizada a primeira conferência de financiamento do desenvolvimento em Monterrey (México) e começaram a ser formalizadas opções para aumentar a capacidade de financiamento diante de desafios globais como a mudança climática, debater sobre responsabilidades adicionais de vigilância da economia mundial ou sobre a correção do desajuste entre os pesos em população e economia em relação à representação política. Então, no início dos anos 2000, o peso das economias da OCDE (representativas das economias de alto rendimento) correspondia a 60%, enquanto os não membros representavam 40%. Estima-se que, desde 2010, as economias emergentes as superaram, com projeções de reversão dos pesos ao final desta década. 

Uma revolução tecnológica acelerada

No plano puramente tecnológico, desde o início do século, os avanços tecnológicos transformaram profundamente a sociedade e a economia global. Entre eles, destacam-se a popularização do acesso à Internet, o surgimento dos smartphones (a partir de 2007 com a chegada do iPhone), a expansão das redes sociais e o desenvolvimento de tecnologias de Inteligência Artificial e aprendizado de máquina que redefiniram indústrias inteiras. Além disso, os avanços em computação em nuvem, blockchain, veículos autônomos, a implementação do 5G e a edição genética marcaram marcos significativos. A Quarta Revolução Industrial, caracterizada pela integração de tecnologias digitais, biológicas e físicas, teve seu início formal em 2011, quando Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, destacou a convergência de tecnologias disruptivas que transformam a produção, a governança e a vida cotidiana.

Para ilustrar essa mudança, no início de 2002, as dez empresas com maior capitalização no mundo estavam distribuídas entre os setores de energia, farmacêutico, bancário, comércio e tecnologia (Microsoft e Intel). Atualmente, (e entre elas, apenas a Microsoft permanece no top 10 graças a novos negócios como a nuvem e a Inteligência Artificial). De fato, em 2002, não existiam Meta, YouTube, WhatsApp, Instagram, TikTok, Zoom, Tesla, Airbnb ou Uber, para citar apenas algumas, as quais hoje são indispensáveis para a informação, comunicação, mobilidade, finanças, trabalho e até mesmo para as relações internacionais.

Essas mudanças extraordinárias, se é que aconteceram, provavelmente se acelerarão nos próximos anos, tornando este o momento de ação. As presidências do G20 por economias do Sul Global, o surgimento de instituições financeiras internacionais com capital integral de economias emergentes, ou o aprofundamento das relações econômicas e financeiras sul-sul (comércio, investimentos, transferências de tecnologias) são hoje parte estrutural da economia e da política global. O impacto da mudança climática sobre a frequência e profundidade dos desastres naturais é evidente. Nos últimos cinquenta anos, cada país da América Latina e do Caribe sofreu, em média, o impacto de um desastre climático por semana, seja inundação, tormenta tropical, furacão, seca, onda de calor ou incêndio. E, de fato, estão sendo observadas migrações em massa por motivos econômicos, mas cada vez mais climáticos e até mesmo bélicos.

O financiamento para o desenvolvimento precisa ser modernizado e alinhado com as exigências do século XXI, especialmente no campo da digitalização, e a próxima conferência das Nações Unidas sobre financiamento do desenvolvimento (Sevilha, 2025) abre uma oportunidade magnífica para Ibero-América. É o momento de redesenhar como os recursos destinados a essas infraestruturas e serviços digitais são mobilizados nos mercados emergentes, e na América Latina e no Caribe, em particular.

Para essas regiões emergentes, surfar na onda digital é uma oportunidade única para acelerar seu desenvolvimento, até mesmo dando um salto de décadas, superando barreiras históricas como a falta de infraestrutura física ou o acesso limitado a serviços essenciais, e a integração nas cadeias globais de valor. Isso é possível ao priorizar aspectos chave como a conectividade inclusiva e segura, o desenvolvimento de um Estado ágil e inteligente com serviços públicos potencializados pela Inteligência Artificial, a valorização do talento, a digitalização de setores econômicos tradicionais como os agrícolas, manufatureiros e de serviços, e setores avançados, incluindo tecnologia financeira (fintech), biotecnologia, energias renováveis e logística, além da proteção do meio ambiente.

A digitalização abre novas oportunidades para o empreendedorismo, gera empregos em setores tecnológicos emergentes e democratiza o acesso à educação, à saúde e ao comércio, integrando populações tradicionalmente excluídas. É um catalisador para a transição para modelos sustentáveis de desenvolvimento econômico e proteção ambiental, um tema especialmente relevante para regiões com alta biodiversidade e vulnerabilidade climática. No entanto, esses avanços requerem bases sólidas que muitos países em desenvolvimento ainda não possuem. A construção de infraestruturas digitais, incluindo conectividade universal e redes de dados, é onerosa, e seu financiamento está limitado por restrições orçamentárias e acesso desigual a investimentos estrangeiros. Além disso, muitas dessas economias carecem da presença de gigantes tecnológicos como Apple, Alphabet, Amazon, Meta, Microsoft, Nvidia, Alibaba ou Huawei, que dominam o cenário digital global.

Os títulos de desenvolvimento digital: impacto e estrutura

Uma proposta promissora é a emissão de títulos de desenvolvimento digital para o financiamento da infraestrutura e adoção tecnológica. A tecnologia não apenas impulsiona a inovação, mas também redefine as bases mesmas da economia global. Inovações como a inteligência artificial, o big data, a cibersegurança e os avanços na geração e transmissão de energias renováveis estão moldando o futuro.

Seguindo o modelo de sucesso dos títulos verdes e sociais, esses títulos de desenvolvimento digital seriam projetados para captar recursos destinados à infraestrutura e adoção de tecnologias avançadas. Podem se concentrar em financiar projetos estratégicos que catalisem o impacto da transformação digital nos países em desenvolvimento, abordando tanto infraestrutura crítica quanto tecnologias avançadas da Quarta Revolução Industrial. Entre as iniciativas chave estariam o desdobramento em massa de redes de fibra ótica e cabos submarinos, essenciais para melhorar a conectividade transnacional e a integração na economia digital global; a implementação de redes 5G, que possibilitam serviços avançados em setores como manufatura, saúde, educação e transporte; e o desenvolvimento de cidades e territórios inteligentes, equipados com sistemas de gestão eficiente de recursos como água, energia, tráfego e resíduos.

Além disso, esses recursos poderiam ser destinados à integração da Internet das Coisas (IoT) em ambientes urbanos e rurais, melhorando a qualidade de vida e a competitividade de setores produtivos como agricultura, comércio e logística. Tecnologias emergentes, como drones para monitoramento ambiental e entrega de bens em áreas remotas, plataformas de blockchain para garantir transações e cadeias de suprimentos, e o uso de inteligência artificial para otimizar processos em setores-chave como saúde pública e educação, também poderiam se beneficiar desse financiamento.

Projetos para a construção de centros de dados verdes e sustentáveis, que facilitem o processamento seguro e eficiente de grandes volumes de dados, necessários para a implementação de estratégias de inteligência artificial e a exploração de redes de satélites de baixa órbita, contribuiriam para fechar a lacuna digital das comunidades marginalizadas. Adicionalmente, a expansão de plataformas de identidade digital e infraestrutura de cibersegurança garantiria uma transformação digital inclusiva e resiliente, promovendo o acesso equitativo a serviços públicos essenciais e fomentando a confiança na economia digital.

Em definitiva, os títulos digitais não apenas impulsionariam a competitividade e sustentabilidade econômica, mas também posicionariam os países em desenvolvimento como protagonistas na adoção de tecnologias da Quarta Revolução Industrial, alinhando-se com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e fortalecendo sua integração nas cadeias de valor globais.

Para estruturar um título de desenvolvimento digital que cumpra esses objetivos, é necessário um design técnico adequado que otimize sua capacidade de atrair capital, gerenciar o risco e garantir seu impacto no desenvolvimento, ao mesmo tempo em que se alinha com as características de longo prazo dos investimentos em infraestrutura tecnológica, que costumam exigir um período de maturação prolongado antes de gerar retornos econômicos. Por isso, esses títulos poderiam ter prazos de vencimento de entre 10 e 15 anos, proporcionando aos projetos o tempo necessário para serem implementados e começarem a gerar frutos.

Uma característica chave no design dos títulos digitais é o uso de estruturas de títulos respaldados por ativos. Esses títulos seriam garantidos pelos ativos que financiam, ou seja, essas redes de telecomunicações, centros de dados ou sistemas de cibersegurança e infraestruturas tecnológicas estratégicas, como redes 5G, plataformas de IoT e soluções de IA. Também poderiam ser incluídas infraestruturas para cidades inteligentes, como sistemas de mobilidade e energia conectada. Isso proporcionaria aos investidores maior segurança, vinculando diretamente o desempenho financeiro ao sucesso desses projetos tecnológicos críticos. Esse tipo de estruturação não só reduz o risco de inadimplência, mas também aumenta o apelo do título nos mercados financeiros. Em caso de inadimplência, os investidores teriam direitos sobre os ativos subjacentes, o que mitigaria a incerteza associada às economias emergentes.

Os títulos digitais não apenas impulsionariam a competitividade e sustentabilidade econômica, mas também posicionariam os países em desenvolvimento como protagonistas na adoção de tecnologias da Quarta Revolução Industrial, alinhando-se com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e fortalecendo sua integração nas cadeias de valor globais.

Os títulos de desenvolvimento digital poderiam incluir opções de conversão em ações dos projetos financiados, como é comum em títulos conversíveis. Isso permitiria que os investidores se beneficiassem não apenas dos juros acumulados, mas também de uma possível valorização do projeto, caso se tornem acionistas da iniciativa tecnológica. Essa flexibilidade estrutural também pode tornar os títulos digitais mais atraentes para uma base mais ampla de investidores, especialmente aqueles interessados em assumir maiores riscos com a possibilidade de obter maiores recompensas.

Uma inovação adicional no design dos títulos de desenvolvimento digital poderia ser a inclusão de taxas preferenciais negociadas com grandes empresas tecnológicas. Empresas de grande porte, como as mencionadas, poderiam participar como coinvestidores (combinando capital público e privado) ou garantidores, reduzindo assim o risco percebido pelos investidores e permitindo que os títulos ofereçam condições mais favoráveis do que outros instrumentos financeiros. Essa colaboração entre os setores público e privado ajudaria a criar um ecossistema no qual tanto as grandes empresas de tecnologia quanto os países emissores se beneficiariam da melhoria nas infraestruturas digitais.

Quanto à moeda de emissão, os títulos de desenvolvimento digital seriam emitidos preferencialmente em moedas fortes, como o dólar americano ou o euro, para atrair investidores internacionais e reduzir o risco cambial. No entanto, alguns países poderiam optar por emitir títulos em moeda local, com a incorporação de mecanismos de cobertura (hedging) que protejam os investidores contra as flutuações cambiais. Essa dualidade na estrutura da moeda permitiria aos emissores atrair tanto investidores globais quanto locais, adaptando-se às necessidades do mercado. Além disso, poderia se explorar a relação com as moedas digitais, com as quais, embora ainda estejam em estágios iniciais, compartilham o destino dos fundos.

Além disso, os títulos digitais devem ser respaldados por um sistema de certificação de impacto digital desenvolvido e implementado por empresas independentes especializadas, que garanta a transparência e credibilidade no uso dos fundos. Esse sistema implicaria a implementação de auditorias periódicas e relatórios de progresso, assegurando que os recursos captados sejam efetivamente utilizados para os projetos definidos e gerem um impacto positivo em termos de desenvolvimento econômico e social. Esse quadro de certificação proporcionaria aos investidores a confiança necessária para participar, garantindo que seus investimentos estão contribuindo para o crescimento sustentável dos mercados emergentes.

Para que esses títulos sejam viáveis a longo prazo, os bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco Mundial e seu braço privado IFC, o Banco Europeu de Investimentos, assim como os bancos regionais, como o Banco Asiático de Desenvolvimento, Banco Africano de Desenvolvimento, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou o Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe (CAF), devem desempenhar um papel fundamental em seu design, emissão e promoção. Essas instituições não só aportariam capital, mas também ofereceriam assistência técnica, ajudando os governos a estruturar os títulos de forma a maximizar seu apelo para os investidores globais. Além disso, seu envolvimento garantirá que os projetos financiados por esses títulos atendam aos mais altos padrões de desenvolvimento sustentável e tenham um impacto tangível nas economias locais.

O momento é agora

As economias emergentes precisam entrar em um círculo econômico, financeiro e social virtuoso para poder escapar das armadilhas de produtividade, pobreza, fragilidade institucional e riscos ambientais. A digitalização não é uma opção, mas uma necessidade urgente. Como se diz comumente, o desenvolvimento será digital, ou não será. Os países que não conseguirem construir uma infraestrutura digital robusta correm o risco de ficar para trás em um mundo cada vez mais interconectado.

A América Latina e o Caribe, e mais amplamente a Ibero-América, devem ter mais voz e ação nesse debate sobre a reforma da arquitetura financeira internacional e defender o desenvolvimento desses títulos de desenvolvimento digital. É sabido que, de maneira natural, não é o caso nos grandes eventos internacionais devido ao seu status de renda média, ao funcionamento adequado de seus sistemas políticos e à ausência de conflitos bélicos (enquanto a cooperação para o desenvolvimento tradicional foca nos países de baixa renda ou em conflito, e os investidores internacionais nos mercados mais dinâmicos e desenvolvidos). Mas precisamente estas são as bases para impulsionar uma região a dar o salto para a alta renda, fomentar a formalização das economias consolidando a nova classe média, reconectar os cidadãos com suas instituições e valorizar sua imensa riqueza natural, desenvolvendo sua bioeconomia e soluções para desafios globais como a transição energética. Como exemplo, uma iniciativa de transformação digital na América Latina e no Caribe, que envolva recursos da cooperação internacional, dos bancos de desenvolvimento e maior investimento privado com base em marcos institucionais e regulatórios sólidos, com um montante de 1,3% do PIB regional, poderia gerar 2.5 milhões de postos de trabalho formais e acelerar um ponto a cada ano o crescimento da região (equivalente à soma de uma Colômbia a cada quatro anos).

Os títulos de desenvolvimento digital representariam uma ação inovadora, necessária e concreta para financiar a digitalização nos mercados emergentes, em um momento histórico chave no qual é necessário passar da teoria à ação. Os debates, conferências e grandes alianças globais são úteis para estabelecer o marco conceitual, mas a verdadeira mudança ocorrerá quando essas ideias se traduzirem em projetos concretos que transformem as economias locais. Os títulos digitais podem ser a chave para mobilizar os recursos necessários para fechar a lacuna tecnológica, mas isso exige um compromisso coletivo para tornar essa visão realidade. O sucesso dependerá de que os governos, o setor privado e as instituições multilaterais colaborem na criação de um ambiente favorável para sua emissão e adoção. É o momento de passar da teoria à prática.

O presente e o futuro são digitais, e o seu financiamento também deveria ser. Que melhor momento e que melhor lugar para lançar essa estratégia de títulos de desenvolvimento digital do que em Sevilha, sob a liderança da Ibero-América e de suas instituições? 

Manuel Balmaseda: Atual Diretor do Instituto Espanhol de Bancos e Finanças. Doutor em economia com mais de 20 anos de experiência como economista chefe corporativo em diferentes continentes

Ángel Melguizo: Doutor em economia com experiência no setor público e privado em temas como crescimento econômico, regulação digital, entre outros.

Víctor Muñoz: Engenheiro industrial especializado em telecomunicações, com mais de 20 anos de experiência no setor de TI.

* As opiniões expressas nos artigos e vídeos da revista Pensamento Ibero-Americano são de responsabilidade exclusiva dos seus autores e não refletem necessariamente o ponto de vista da Secretaria-Geral Ibero-Americana.

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