Diante de um cenário externo marcado por tensões geopolíticas e aumento de medidas protecionistas, combinado a um crescimento regional mais baixo do que o observado durante a crise da dívida de 1980, a América Latina e o Caribe têm enfrentado desafios fiscais de grande complexidade. Em paralelo, a persistente desigualdade econômica na região é um traço estrutural que se depreende da análise do índice de Gini, que varia entre zero e um. O Panorama Social da América Latina e Caribe de 2024 mostra que mesmo com a recente queda no índice (de 0.458 em 2023 para 0.444 em 2024), ainda resta uma lacuna entre a base e o topo da pirâmide de rendimento, o que segue causando impactos de ordem macroeconômica.
A tendência de concentração de renda e riqueza é outra face da desigualdade na região, onde 10% daqueles que possuem maior renda, concentram grande parte da renda total, chegando a 43% na Colômbia e 41% no Brasil. Outros países como Costa Rica (35.7%), México (34.4%), Paraguai (35.4%), Chile (34.5%), Equador (34.4%), Peru (30.7%), Uruguai (30.5%), Suriname (30.1%) e Argentina (29.8%), também apresentam indicadores do Banco Mundial que demonstram a concentração de renda no topo da pirâmide. Não obstante, essa concentração é agravada por arranjos tributários pouco efetivos sobre a renda, onde predomina uma base de imposição regressiva e uma baixa incidência no topo.
Outros fatores como o aumento da dívida pública e seus custos comprimem o espaço fiscal e minam a capacidade dos Estados para realizar investimentos sociais, tornando urgente o redesenho de políticas fiscais como ferramentas de combate à desigualdade. É comprovado que os sistemas tributários progressivos trazem efeitos redistributivos, promovem o crescimento econômico equilibrado e a maior eficiência no recolhimento de receitas, como reconhecem estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI).
As brechas no desenho das políticas fiscais também facilitam a prática da evasão, gerando uma enorme perda arrecadatória. Estimativas feitas por Goméz Saibani (2011) mostram que a evasão fiscal na América Latina e Caribe é bem mais extensiva no caso do imposto de renda – tanto para indivíduos quanto corporações – chegando a índices de 63.8% no Equador e 47.7% no Chile, com uma média de 51.4% para a região da América Latina em 2011. A prática da evasão fiscal se aprofunda na economia globalizada, já que a livre mobilidade de capitais gera pressões competitivas para a redução de alíquotas e concessão de incentivos fiscais, o que contribui para a manutenção de arranjos fiscais regressivos. Esta dinâmica tem efeitos perversos sobre o crescimento econômico e a capacidade de arrecadação dos países, limitando-os a alcançar maiores níveis de equidade e bem-estar social.
Em face dos desafios que se apresentam, arranjos globais e regionais de cooperação tributária têm sido pivotais no desenho de marcos normativos e técnicos para a coordenação de padrões globais de tributação. Aprovado em 2021, o desenho do Imposto Mínimo Global (IMG) define alíquotas mínimas entre as jurisdições que recebem operações de capitais, mitigando a competição tributária e a transferência de capitais para locais de tributação favorecida. Proposto pela OCDE, o IMG nasce no contexto da Solução de Dois Pilares (Base Erosion and Profit Shifting – BEPS), cuja base técnica é o programa Global Anti-Base Erosion Rules (GloBE), e corresponde ao Pilar Dois do BEPS. Apesar das importantes realizações, o Pilar Dois tem limitações que já eram evidentes desde o início – como a alíquota relativamente baixa. Além disso, exceções foram gradualmente introduzidas durante as negociações, como a flexibilização das medidas de apoio e a ampla concessão de isenções fiscais.
Numa dinâmica de crescentes desigualdades internas e entre países, como garantir que todas as jurisdições implementem efetivamente um imposto mínimo global? Qual o papel da cooperação tributária internacional na realização prática de um imposto mínimo global para multinacionais e indivíduos de alto patrimônio líquido? Para responder às indagações, serão identificados os desafios da implementação do imposto global sobre multinacionais e os elementos que apontam a possibilidade de um imposto mínimo global sobre indivíduos de alto patrimônio líquido (HNWI). Espera-se que as reflexões propostas contribuirão para o redesenho de iniciativas que no futuro possam superar o caráter utópico do imposto global, o que só pode ser alcançado mediante sistemas tributários mais progressivos, inclusivos e igualitários.
O imposto global sobre multinacionais: avanços e brechas
Há dez anos era difícil quantificar a dimensão da evasão e da transferência de lucros na economia global, dada a falta de transparência sobre as atividades das empresas multinacionais. De uma forma geral, as empresas que operavam no exterior não tinham a obrigação legal de divulgar publicamente os seus lucros, nem para as autoridades fiscais nacionais nem para outros países onde operavam. Com o aprofundamento das pesquisas na área, os investigadores escancararam o problema da evasão e da transferência de lucros de multinacionais para paraísos fiscais. Estudos de Aristodemou (2024) sobre os Panama Papers, FinCEN Files e Pandora Papers, demonstram o volume e o impacto do Planejamento Tributário Agressivo, o que comprova que a evasão e transferência de lucros é uma prática que envolve o planejamento jurídico e explora brechas tributárias em jurisdições de tributação favorecida.
No ano de 2015, a OCDE lançou o projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) para reduzir as possibilidades de evasão fiscal decorrentes da economia digital e das disparidades entre os sistemas fiscais dos países. A alta mobilidade de capitais e a transferência de lucros por multinacionais (MNEs), bem como a falta de transparência e padronização da troca de informações se apresentavam como problemas a serem contornados e, para tanto, articulou-se a criação de um Quadro Inclusivo (IF) para monitorar a implementação dos mecanismos de registro e troca de informação. Desde sua criação, mais de 140 países e territórios já assinaram pela aplicação de um imposto mínimo de 15% sobre os lucros das multinacionais. Esta foi a primeira vez que um acordo internacional estabeleceu um padrão mínimo para determinados impostos sobre os lucros de capital, ficando conhecido como o segundo pilar da OCDE e que até hoje constitui um marco na regulação tributária global.
Apesar dos avanços, o cumprimento dos padrões mínimos permanece aquém do ideal. O alto custo e a falta de simplificação dos mecanismos de registro e troca de informações, que muitas vezes são incompatíveis com as capacidades administrativas das jurisdições, limitam a efetividade do imposto mínimo global sobre corporações. O Relatório da Evasão Fiscal Global (2024) identifica que a criação de novas regras na concessão de incentivos são uma falha do Pilar Dois. Estas regras permitem que uma parte do lucro (equivalente a 8% dos ativos tangíveis mais 10% abatido da folha de pagamento) pode ser excluído da base de cálculo do imposto mínimo no primeiro ano do acordo. Essas taxas são reduzidas gradualmente, até atingirem 5% dos ativos tangíveis e 5% sobre salários após 10 anos de implementação. Isso faz com que as empresas que possuem atividades num determinado país continuem pagando abaixo da aliquota mínima. Além disso, estas taxas incentivam a competição tributária e agravam as desigualdades econômicas entre os países, que muitas vezes oferecem incentivos fiscais como forma de atrair capitais externos.
Num contexto de múltiplas desigualdades é fundamental aprimorar arranjos multilaterais de cooperação tributária internacional, que até alguns anos eram considerados utópicos, mas que são possíveis com soluções tecnicamente viáveis e vontade política.
Ao acessar o panorama fiscal na América Latina e Caribe, vemos que os índices de evasão são relativamente altos, tanto para o Imposto de Renda (IR), quanto para o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), mesmo que haja diferenças de país para país. Apesar das recentes reformas progressivas e do investimento em mecanismos para acesso e troca de informações, a falta de transparência e de coordenação transfronteiriça ainda permitem que a evasão ocorra, o que reflete a urgência e o desafio de implementar efetivamente um imposto mínimo global. Dados do Banco Mundial mostram que há uma falta de equilíbrio na composição das receitas, sendo que grande parte dos tributos na América Latina e Caribe ainda incidem sobre bens e serviços, restando ainda um grande potencial tributário sobre rendimentos de capitais (Gráfico i) . Reformar o arranjo distributivo da carga fiscal é uma importante forma de reduzir a lacuna da progressividade, o que se faz necessário para que um imposto mínimo seja implementado com efetividade na região.

Num contexto de múltiplas desigualdades é fundamental aprimorar arranjos multilaterais de cooperação tributária internacional, que até alguns anos eram considerados utópicos, mas que são possíveis com soluções tecnicamente viáveis e vontade política. Por isso, a busca por novos marcos legais que otimizem o processo de troca de informações e de registro de ativos é uma estratégia central para a realização plena do imposto mínimo global. Iniciativas como o Common Reporting Standard (CRS), que é um sistema de registro de informações de ativos já utilizado por mais de 120 jurisdições, poderiam ser extendidas e aprimoradas para monitorar os rendimentos dos indivíduos de alto patrimônio líquido (HNWI).
O imposto global sobre HNWI: um longo caminho
Apesar de não existir na prática um imposto mínimo global para indivíduos de alto patrimônio líquido, a existência de mecanismos de troca de informações e arranjos de cooperação tributária internacional demonstra que a adoção de um padrão comum é tecnicamente factível. Zucman (2024) afirma que o imposto mínimo é um poderoso instrumento para melhorar a eficácia da tributação de HNWI, já que, a despeito das estratégias globais de evasão, o montante efetivamente pago não pode ser inferior a uma determinada alíquota-base. Isso garantiria que os HNWI paguem ao menos sua justa parte em impostos, o que não é observado na maior parte dos países da América Latina e Caribe, onde a carga tributária sobre os salários, bens e serviços é muitas vezes maior do que sobre o topo da pirâmide de rendimento. Embora a cobrança do imposto sobre o rendimento das pessoas físicas tenha aumentado na região, as pessoas jurídicas ainda contribuem com 60% do montante total do imposto sobre renda, enquanto as pessoas físicas arcam com o restante. Jimenez et al (2020) mostram que este quadro contrasta com os países da OCDE, onde os percentuais se opõem: 73% da contribuição é feita por pessoas físicas e 27% pelas pessoas jurídicas; enquanto na média da União Europeia, o imposto sobre as pessoas físicas atinge chega a 78% do total.
Frente a esta disparidade, o mecanismo do imposto mínimo global deve ser otimizado e ampliado para que mais jurisdições recolham impostos dos HNWI e de multinacionais de forma coordenada, o que pode fortalecer sistemas fiscais progressivos e trazer efeitos macroeconômicos positivos. Para que o caráter verdadeiramente global de um imposto sobre renda e riqueza deixe de ser utópico, é preciso atacar as brechas e a opacidade da relação entre pessoa jurídica e pessoa física. Isso envolve o mapeamento de ativos de grande mobilidade, bem como a melhoria nos sistemas de troca de informações. Além disso, as reformas progressivas e a simplificação dos mecanismos de registro podem facilitar a efetividade das políticas e a coordenação entre autoridades bancárias e tributárias.
Diante disso, é benéfica a adoção de mecanismos transfronteiriços que facilitem o registro global de beneficiários finais (beneficial ownership), aprofundem a troca automática de informações financeiras e aprimorem o monitoramento de todos os tipos de ativos. Estes incluem desde a propriedade imobiliária até os criptoativos, sendo que os últimos são altamente complexos de serem rastreados e se ligam à prática da corrupção, lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas transfronteiriças. Contudo, ainda é necessário otimizar brechas dos sistemas de registro e identificação, já que as perdas arrecadatórias por evasão em paraísos fiscais foram estimadas em US$145 bi no ano de 2024, como atesta o relatório sobre o Estado da Justiça Fiscal em 2024. Frente a esta perda, aprimorar estudos e mecanismos que ajudam a identificar o beneficiário final de determinados ativos são estratégias que possibilitam o melhor desenho de tributos sobre HNWI e maior efetividade no combate à evasão fiscal.
De forma paralela, entre o final da década de 1980 e 2024 estima-se que a riqueza dos bilionários globais cresceu em média 7.1% ao ano, já descontada a inflação, conforme o relatório “A blueprint for a coordinated minimum effective taxation standard for ultrahigh-net-worth individuals”. Sem dúvidas a busca pelo imposto global para os mais ricos se torna urgente diante deste cenário de desigualdade e forte concentração de renda e riqueza, cujos efeitos só agravam ainda mais a desigualdade entre os países. Outras estimativas do relatório mostram que um imposto global de 2% sobre a renda presumida – com base nos ativos rastreáveis – dos HNWI, geraria uma receita anual global entre US$ 200 bi e US$ 250 bi. Se a partir do mapeamento de ativos que já possuem registro público estima-se tamanho montante, à medida que são aprimorados os mecanismos de rastreio de ativos e troca de informações, o volume dessa receita tende ao aumento.
De maneira geral, tem crescido a quantidade e a qualidade dos trabalhos técnicos que demonstram a importância um imposto global sobre HNWI, já que eles possuem alta mobilidade, demandando uma ação coordenada em escala. Além disso, avanços precisam ser constantemente buscados no nível da transparência, com destaque para a pesquisa e desenvolvimento de mecanismos de registro de beneficiário final, que tem sido um tema estratégico no combate à evasão e aos fluxos ilícitos financeiros. Em paralelo aos avanços no nível técnico, são necessários o consenso e a articulação política para estabelecer e aprimorar arranjos de cooperação tributária internacional que implementem mudanças de ordem institucional e jurídica.
No ano de 2024 importantes iniciativas para reformas progressivas e tributação de HNWI têm ganhado espaço em fóruns multilaterais como o G20, que aprovou a primeira declaração ministerial do G20 sobre Cooperação Tributária Internacional. Outra importante iniciativa ocorre no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), onde está em curso a negociação da Convenção-Quadro sobre Cooperação Tributária Internacional (UNFCITC), que irá trazer avanços de ordem jurídica por meio dos protocolos que acompanham a Convenção. Para que um imposto global seja realmente efetivado para todos os tipos de contribuintes é fundamental a construção de arranjos multilaterais inclusivos, onde todas as jurisdições tenham representação. Apesar dos desafios, a busca pelo consenso, o aprofundamento do diálogo e a cooperação tributária internacional podem tornar a utopia do imposto global em algo mais próximo da realidade.
Considerações Finais
No contexto de baixo crescimento regional combinado a um estreito espaço fiscal, lidar com o problema da desigualdade e da concentração de renda e riqueza deve ser uma prioridade das políticas fiscais na América Latina e Caribe. Indicadores mostram que ainda há uma grande lacuna na tributação da renda proveniente dos ganhos de capital, o que demanda o aprofundamento das reformas progressivas na região. Essas distorções se observam no nível global, onde existem pressões competitivas para a manutenção de baixas alíquotas e concessão de incentivos para atração de capitais, o que contribui para a persistência de arranjos regressivos e facilita a evasão. Assim, a implementação efetiva do IMG ainda esbarra na profunda desigualdade econômica e administrativa dos países.
Os atuais arranjos de cooperação tributária internacional, bem como os mecanismos de registro e troca de informações ainda precisam ser aprimorados e expandidos para maximizar a inclusividade e garantir a aplicação de um imposto que também abranja os HNWI. Ainda assim, os avanços conquistados nos últimos dez anos mostram que a aplicação prática do IGM já é possível em 142 jurisdições, mesmo que persista o desafio de vencer as brechas e a sofisticação das práticas de evasão. Para que o imposto mínimo global seja realmente efetivo e abrangente, é necessário investir em estudos técnicos e iniciativas multilaterais que encorajem a vontade política de construir sistemas fiscais mais progressivos, justos e inclusivos.